. livro  . poesia

A Vocação Suspendida

de

Lauren Mendinueta

António Carlos Cortez [tradução e posfácio]

 

Editora Exclamação, 2023

A Convidada da Memória

 

Contigo em Outra Parte

Fui jovem antes de tornar-me ao passado.

Hoje, convidada da memória,

o verão encontra-me de cabelo branco

da lua mais transformada.

Gostaria que estivesses comigo,

mas não aqui,

senão nas doces mansões da mente.

in A Vocação Suspendida de Lauren Mendinueta*

 

Um dos protocolos que a leitura judiciosa de poesia tem sido mais intransigente a celebrar é o do reconhecimento cristalino da voz poética. Saber-se-á o quanto semelhante expediente veio em auxílio de um discurso que deixou de aceitar noções caídas em desuso – quem sabe, em desgraça –, com termos muito sanguíneos como estilo, maneira, prosódia, dicção, entoação, expressão, ou o mais neutro linguagem. Com a noção de voz, que se espera afinada com o princípio do personalismo sob a retórica em torno daquilo que é sempre muito próprio, único e a fortiori pessoal, cumpre-se a exigência da autenticidade, esse dogma estético imposto pelo idealismo, regime que ainda vigora na legitimação da obra de arte. Porém, quando escandida, ver-se-á bem que a voz não é mais do que uma combinatória de estilemas, ou que tem, quando observada pelo quadrante do inefável, a supina firmeza de um fenómeno atmosférico. A este estado de coisas, haveria que acrescentar a longa linhagem que prende o ‘vocalismo’ poético à relação univitelina entre poesia e música, e que portanto fará da voz talvez apenas uma metonímia de um vasto contentor onde podem esconder-se e reverberar subtilezas tão virtuosísticas como o ventriloquismo e o logolalismo.

Arriscando a bagatela de entrar por um trabalho poético dentro com uso de apetrechamento proto-teórico imprudente, se não mesmo desairoso, é preciso que se diga do excurso que até aqui nos trouxe querer apenas sinalizar a vocalolatria dominante, e que é o fundo contra o qual os poemas de Lauren Mendinueta (n.1977), em A Vocação Suspendida (2023), parecem rebelar-se com uma energia poética animada por valores muito salientes. Alguns deles assaltam-nos com o estrépito daquilo que vem do princípio dos tempos, e cuja enunciação a poeta vai experimentando e reexperimentando, dispensando para isso poses e ensaios vocais. Pode assim dizer-se da produção de Mendinueta que é, antes de mais, uma poesia de ideias condutoras – mas também procuradas –, sem que isto a torne numa experiência mental, ou numa árida poesia intelectualista, e menos ainda idealista. Trata-se de um ideário marcado por um desenho do mundo cheio de franqueza, sem ilusões nem moralismos – «[n]inguém é mais jovem que sua própria velhice» [p. 88] –, e que a poeta transforma num entrelaçado de causas, mas sem proselitismos nem deslumbramentos – «a verdade é arte, a arte é insuportável» [p. 72]. A ideia mais vincada, e que confere a esta poética um travo auto-reflexivo muito doseado, dá-no-la o título deste livro, a ideia de vocação. Vocação poética a prima facie, e que, por sinal, uma ironia etimológica liga umbilicalmente à noção de voz (latin. vocatiōne). Mas a vocação não é aqui encontrada como dom material, ou faculdade exercida, qual aparelho vocal que se exercitasse. É antes uma disposição anímica ontologicamente negativa que se afirma sempre pelo que não é, ou pelo que não deveria ser, pelo que nega e renega a uma existência sem mansidão; ou que é ainda denunciada pela interrupção sentida – ou ausência de sentido («suspendida») –, e a que é dado um recorte poético finíssimo e inquietante, entre o sobressalto decepcionado e a aceitação da fatalidade, como nestes versos do poema Uma Tarefa Árdua: «todo o pássaro real ou imaginário/ (…) precipitar-se-á ao encontro da velhice/ que é a verdadeira vocação do que existe» [p. 60]. Esta vocação, que não é bafejamento propiciador nem maldição cultivada, e que também não se sobrepõe à ideia de ofício, é exposta como um locus expandido de incerteza sobre a realidade e a vida. E de onde se retira um comprazimento existencial desarmante, aquilatado que está por paradoxos e aporias, recuando de certa forma à ideia do “desconcerto do mundo”, como no exacto poema A Vocação Suspendida: «Se escrevo pode ser que alguma vez revele alguma verdade/ pelas rotas onde meu sangue me arrasta./ Sou livre porque estou presa no engano que supõe todo o mistério» [p. 64].  Neste sentido, o horizonte de destino desta vocação poderá acabar por revelar-se ser tão-só o ‘silêncio’. Não como fracasso, mas, um tanto como com Lord Chandos, como suspeita e como renúncia. Assim se lê no poema Afasia: «A perfumada madeira de uma memória sem árvores,/ sem alfabeto que responda pelas palavras da tribo,/ (…) nessa solidão também é possível prescindir da fala,/ da presumida vocação da linguagem»[p. 57].

Daquilo que acima se designou como ‘ideias condutoras’, há uma jazida muito fértil neste volume que, divido em partes, é legítimo tomar como reunião de diferentes livros, cuja escrita, de resto, está separada por vinte anos, e no centro do qual estará o muito conseguido livro epónimo. Notar-se-á assim uma natural variação de registos, apartados no tempo e nos propósitos, que, independentemente do desequilíbrio que podem acusar, tanto formal quanto conceptual, mostram a coragem poética de quem persegue aquela vocação de rosto informe que antes se observou. Será no cenário desta volubilidade que a constelação das ideias condutoras torna a leitura da poesia de Mendinueta num percurso caudaloso de reencontros sucessivos. Para que bem se entenda o estatuto destas ideias que aqui tentam relevar-se, será prudente, antes de enumerá-las, que sejam contrastadas  com o cardápio de outras instâncias literárias com que não devem confundir-se, como os ‘temas’, os topoi, os tropos, os motivos, os ambientes, as esferas, os lugares, as cogitatios, os juízos. As ideias condutoras são orbitações que a poeta pratica como exercícios de aproximação aos significados, às definições, às circunscrições de sentidos vários, sempre sob o honestíssimo regime da ‘forma tentada’, que tanto impõe a dúvida como outorga o devaneio. Ainda no poema epónimo, os muito bem desenhados e muito justos versos de abertura: «não é honesto deter-me procurando justificar com ideias/ o que é a vida na vocação,/ esse algo que está a meio-caminho entre a cor da minha atmosfera típica/ e a ponta da realidade» [p. 64].

O estranhamento de si, o corpo fantasmático, a morte adivinhada, o tempo que viaja, a falsificação do amor, a superação do desterro;  estas algumas das ideias condutoras que pontuam a paisagem poética de Lauren Mendinueta, onde, a cada tanto, ressurgem com formulações sempre retomadas, e por vezes ao arrepio umas das outras, o que faz ver o trabalho da poeta como um campo de refracções. É uma paisagem com variações topográficas de vulto, onde se encontram picos isolados e altíssimos como o do poema A Aparição do Impossível [A Balthus] e a sua ideia rutilante de um ‘duplo do mundo’, que não é coisa igual à ideia de uma duplicação do mundo; ou o do poema Eu, Marina Tsietáieva, e a sua ideia portentosa de um ‘alter-auto-retrato’, que não é facécia igual à da ideia de um auto-retrato ficcionado. Porém, a ideia meridiana que atravessa este livro e descreve uma linha contínua e muito contrastada no perfil da sua paisagem., desde a primeira secção, A Errância e a Proximidade, secção libérrima, até à última, A Realidade Alterada, secção maduríssima,  é a ideia de ‘memória’. Ideia que vai sendo pesquisada com o corte de um ensaísmo poético que permite à poeta sangrar uma veia aforismática dadivosa: «A memória é a vingança do tempo» [p. 56]. Ensaísmo, diga-se, sem euforias experimentalistas. Vinque-se ainda que a memória é tomada como matéria de burilação estética, no seu aspecto de um amplo recinto de manobras [um Spielraum], e na senda do vasto ‘palácio da memória’ de Santo Agostinho, não sendo pois pasto para alimentar um catálogo subjectivado de imagens envernizadas de outros tempos. Posto que quem esperar de Mendinueta a celebração exotista, na forma de postais ilustrados, de um passado vívido e encantatório ou de uma biografia marcada pela nostalgia comprazida, terá de confrontar-se com um único poema sob esses auspícios, e cuja cortante crueza de espírito tem, a contrapelo, sinal contrário ao de qualquer fascinação. É o precisamente intitulado Em sua Memória [A Liliana Mendinueta], relato de um episódio da vida da mãe feito com recurso a uma elisão muito contida e dominada, como se fosse afinal memória difusa, ou não vivida ou a ser esquecida; ou mais perturbante, uma memória imaginada.

Entre o prefaciador e o posfaciador deste livro parece ter-se instalado a controvérsia acerca da centralidade da metáfora na poesia de Lauren Mendinueta, sendo que um dá-se a dizer ‘sim’, enquanto ao outro é oferecido dizer ‘não’. Será por certo um debate estimável, conquanto ocioso pelo desacertado que se mostra. Se há figuras centrais nesta poética serão seguramente as antíteses, a que Mendinueta lança mão exímia como reforço do esteio exploratório e especulativo em cima do qual correm as ideias condutoras. A ‘memória’ está no cerne deste filão antitético, e a metáfora usa ser utilizada como ‘recurso de recurso’. Assim: «[r]ecordar tudo para que o esquecimento seja certo/ Não levantar a mão para medir-me» [p. 89].   

Se quiséssemos cometer uma traição à integridade textual dos poemas de A Vocação Suspendida para asseverar a penetração que neles têm a ideia de memória, deitar-nos-íamos a esse exercício vagabundo que é a estatística das ocorrências, e bastaria com isso contar que em doze poemas da seccção central o vocábulo surge sete vezes. Ou talvez, numa observação ainda mais questionável, verificar que tanto no primeiro como no último poema de todo o volume, que têm entre eles setenta outros poemas, está presente a palavra memória, a única que têm comum. Na realidade, o que pretendemos pôr em marcha é o escrúpulo muito cauteloso com que deve ser tomada a ideia de ‘memória’, com a neutralidade e a bondade que for permitido serem-lhe concedidas, isto no contexto do labor poético contemporâneo. É que por via de uma valorização cultural e filosófica desencontradas, o conceito de ‘memória’ poderá viajar mal entre hemisférios e não estar isentado de sofrer uma tradução cultural distorcida. O que de um lado pode ser entendido como uma disposição nobilitante, restituinte e reparadora, do outro não logra emancipar-se de uma candura atávica e do conservadorismo. Desencontro que, na verdade, cabe à poeta dissolver, desarmadilhando todas as reservas e todos os zelos, pois que, com bravura, assim sentencia: «[n]um mundo assaltado pelo tempo/ o esquecimento é a vocação perfeita» [p. 54; destaques nossos].

 

Nota: O esforço da tradução de A Vocação Suspendida para tornar a poesia de Lauren Mendinueta em poesia portuguesa, ou apenas poesia em português, é saliente. Sustenta-se na ideia de fazer transparecer o idioma da poeta com base numa preservação do léxico, tirando partido da aproximação e afinidade de lexemas, regidos pela fonética e métrica respectivas. Isto levou o tradutor a tomar opções temerárias que o fizeram tropeçar imprudentemente em 'falsos amigos', e distorceram de tal forma a integridade semântica desta poesia que arriscaram bizarrias de estridência surrealizante. É o que explicará, no poema A Viagem, a extravagância de «a equipagem tão leviana» [p. 49], cuja tradução simples e belíssima seria apenas «a bagagem tão leve». De resto, é o que justifica o desvelo de duas notas de rodapé para dar conta de dois problemas ali insolúveis, mas que a literalidade resolveria com benefícios evidentes para com a composição literária. No poema Auto-Abandono, a manutenção de um dos versos no original, «en el espejo roto del baño» [p. 32], é claramente escusada pela dissonância acústica que provoca, mas também porque interrompe a anáfora com que abre o poema, e por isso melhor teria sido «procurei o meu rosto no espelho/ meu rosto ainda mais quebrado/ no espelho quebrado da casa de banho». Mais sério, os 'falsos amigos' sintácticos tornam-se tão perfurantes que chegam a desfigurar o sentido dos versos. No mesmo poema, Auto-Abandono, o verso de abertura está assim vertido, «Apenas ontem tinha quarenta e nove anos» [p. 32], no que deveria seguramente ser «Ontem mal tinha quarenta e nove anos». Há mais, todavia traduzido por «todavia» e não pelo «ainda» como terá de sê-lo no último verso do poema O Clamor da Oração [p. 44]. A rever.       

* A Vocação Suspendida de Lauren Mendinueta, Porto: Editora Exclamação, 2023 [p. 46]

 

JBC

12 de agosto 2023