. exposição . pintura .

Humanta

de Joana da Conceição

em

Quéréla 

projecto de Ana Cristina Cachola

Calçada da Estrela, 128, em Lisboa

até 23 de Março

 

A meandrização excelentíssima,

ou como não ficar calada até virar estátua

 

Será, talvez, ponto assente que o registo encomiástico não deve adoptar-se sempre que referido a dois nomes. Dividi-los-á mais do que há-de iluminá-los. Na verdade, nem tão-pouco, seguramente, quando a peça escrita se alcandora ao instituto da crítica. Panegíricos leva-os o vento. Mas feita esta reserva, que é já uma confissão de entusiasmo – ou uma tomada de balanço –, no caso do elóquio que aqui se ensaia, o louvor a Ana Cristina Cachola, e a Quéréla, o projecto que dirige [Calçada da Estrela, 128, em Lisboa], e o elogio da artista-investigadora Joana da Conceição e a exposição de pintura Humanta, que ali dá a ver até ao próximo dia 23 de Março, não se acotovelam. E não relevam, também, de um qualquer deslumbramento frívolo que se cola às iniciativas, soi-disant 'adisciplinares' (já se usou dizer ‘de contracultura’), das manifestações artísticas deste exacto instante. E que não estão livres de dar ignição a um súbito espanto de saison, muito passageiro. Quéréla e Humanta merecem rendição laudatória porque tocam em – trabalham com –, matéria, não apenas alta e urgentíssima, mas ainda antiquíssima. E fazem-no mais do que com competência. Com desassombro. Vejamos.

Há algo de muito raro que irá passar-se sempre que vier a falar-se de Quéréla, projecto, como já se disse, dirigido por Ana Cristina Cachola. E sobre Cachola recusamo-nos a brindá-la com qualquer epíteto honorável, daqueles que enchem as bocas de anteontem, e que virão a ter, por exemplo, a mesma fortuna disciplinar do “marchand” (au XIXème) e do galerista (au XXème), e a quem hoje, nenhum volume desse saber peregrino, a história de arte, faz menção. Falamos dos ‘chique-a-valer’ curadores, programadores, comissários, agentes, dinamizadores (?!), que, não nos cansaremos de denunciar, estão para os artistas como os tratadores estão para os animais no jardim zoológico. E o que é mais sério nestas personagens é que escusam-se a ser tão sensíveis ao fenómeno da arte como os tratadores o são à taxonomia de Lineu. E talvez mais grave, mantêm prisioneiros aqueles que alimentam, sempre com a desculpa supinamente cínica de que são pagos para isso. Apontamos as baterias a curadores, programadores e tutti quanti porque os tempos foram-nos transformando em meros curiosos, incensados a celebrantes dessa donna mobile chamada Arte. E a razão é rasteira. Ao contrário de todas as outras expressões daquilo que a vulgata usa designar ‘indústrias criativas’ (– abrenúncio!), onde tem lugar de honra, imagine-se, a publicidade, reina na órbita da arte contemporânea uma curiosidade militante que se rege por ir ver a última afronta que a artista contemporânea terá perpetrado à urbis.

O trabalho de Ana Cristina Cachola vai mal com semelhante state-of-affairs, de resto, já muito batido por uma caricatura folclórica, onde germinam a chacota e a suspeita. Se é que o trabalho de Cachola não será mesmo movido por um combate feroz a toda essa ganga marcada pelo espavento do freak show. As questões que vêm granjeando as qualidades de Cachola têm tido fulcro nos debates de género e no papel da mulher no sistema da arte, o que já, por si, lhe põe nas mãos mais rapidamente a bandeira de activista, do que um estandarte de curadora de exposição, fixado no passeio em frente da porta. Mas essas qualidades são também o que transformam Ana Cristina Cachola numa voz bem recortada sobre o nosso fundo institucional que começa a tornar-se baço. Referem-se elas a um refinamento teórico e doutrinário de mão cheia, que lhe oferecem, sim, umas cnémides bem urdidas com a substância da arte: o pensamento marchetado sobre a sensibilidade humana. E isto fica ainda mais evidente com a entrada no historial de Quéréla da exposição Humanta e as obras desafiantes de Joana da Conceição. No texto que acompanha a exposição, Cachola estilhaça com toque de um requinte assinalável um dos artefactos mais prestigiados da modernidade – o espelho –, responsável pela imagem das duas operações intelectuais que até hoje mais marcaram a ideia de progresso humano: a reflexão (filosófica) e a especulação (científica). Mas que, também, mais perfidamente vincou o cânone da representação artística: o do ilusionismo mimético ao serviço de toda a legião de realismos e naturalismos, e de que a ‘perspectiva linear’ é a grã-oficiante. Os termos de Cachola são lapidares, mais que não fosse, porque finais: «que […]as dinâmicas representativas opere[m] num campo poético que já é político». Com Quéréla, e fiquemos com a certeza de a isto voltarmos sempre, o 'político' terá de travar-se de razões com a arte.

E é logo assim com as obras de Joana da Conceição em Humanta. Acima de tudo, porque são pinturas num estado em que a agressão – chame-se-lhe ‘política’ como quem diz simplesmente ‘humana’ – está tão manifesta que é difícil não arriscar o título maior de obras em carne viva. Com a legitimidade acrescida de a proposta artística de Conceição apelar para esse processo, quasi-estropiante, que é o enxerto, tão comum nos processos de hibridização em que a artista é pródiga. E legíveis no título da exposição, cuja aglutinação lexical nos inibimos de revelar a bem de uma combinação felicíssima. Desmembrá-la significaria um destrato.

A Humanta deveria estar reservada uma investida ecfrástica que fizesse completa justiça ao que se vê-e-não-vê. Mas semelhante transposição de arte iria sempre embater na impossibilidade de verter qualquer coisa que em estética leva o nome de Stimmung, uma certa atmosfera, um certo sopro; aqui, muito cheios de carácter, coisa que artistas há que pugnam uma vida por no-los inocularem. E o sopro de Joana da Conceição não vem dulcificado. Chega-nos de um lugar onde há febre bastante, e de um tempo onde há ruínas que baste. À conta disto, não é fácil levar o trabalho de Conceição para as bandas de quaisquer afinidades, temáticas, pelo menos. E apesar de uma dada respiração ecológica, colar a artista à voga antropologizante, vagamente actual (como se não tivesse havido esse projecto por acabar enunciado por Hal Foster, «The Artist as Ethnographer»), é abafar um fôlego ancestral, senão mitológico, ao calor do qual a pintura de Conceição parece forjada. Oportuno esclarecer que a uma das pinturas  de mais, um prodígio pictórico , a artista descreve-a como o Berço de Vénus. Mas meteu nela – ‘nele’ –, tamanha bagagem metafísica (sim, há ali aparições), que Conceição poderia considerar-se uma ‘contra-mitógrafa’. Palas Atenas teria apreciado berço igual, em vez da cabeça paterna.

E portanto, descarnada de qualquer pretensão classicizante, a pintura de Conceição faz o seu trabalho de grand-oeuvre, mormente sobre uma paisagem ruinosa, que ao ser tocante, não deixa de ser admirável. E dos muitos recursos em que a artista é fecunda, destacamos dois que, estamos certos, constituem já os motivos em que é mais exímia. Mas que também, assim o tememos, Conceição venha a sofrer penas para deles libertar-se. O primeiro, ao qual reconhecemos a dificuldade em nomeá-lo que não perifrasticamente, consiste num efeito de ‘inacabado’ preso às 'franjas' da tela. Isto através de uma mancha a negro que envolve o espaço da pintura, colocando o pictórico num nicho de sombras lindíssimo. Daqui, resulta uma imersão que não é óptica. É física e corporal. Não poucas vezes, dar um passo para lá da ‘moldura negra’ torna-se pulsional. O segundo diz respeito a um motivo excelso. A vários títulos: conceptuais e simbólicos. Falamos da representação muito elegante de gregas e de meandros. Numa das obras, vêem-se dois frisos proto-arquitectónicos, tombados um sobre o outro, nos quais a representação desta meandrização tenaz só pode querer dizer, “viemos para ficar”, mesmo que nos deitem abaixo. E se pretendem um toque de ecologia avant-la-lettre, já, em seu tempo, dizia o nosso mais insigne arquitecto paisagista que aquilo de que mais precisamos é de meandros, onde a humana possa envolver-se com a planta. Na altura, rebelava-se ele contra a proliferação de corredores-verdes: pas chez Conceição.

JBC

09 de Março 22