. livro  . ensaio

Cosmopolitismo e Rêverie

de

Maria João Cantinho

[The Poets And Dragons Society, 2023]

Benjamin, fulgurações 

 

Sem que com isto se deslustre a respectiva elaboração ensaística, caberá dizer do volume Cosmopolitismo e Rêverie assinado por Maria João Cantinho que persegue com apuro um propósito de abertura à ‘urbis’ do pensamento de Walter Benjamin, o que não deve ainda ser tomado por tarefa de divulgação, e menos ainda de vulgarização. Na verdade, o pensamento de Walter Benjamin, apesar da extensa fortuna que foi granjeando a partir das últimas décadas do século XX, tem permanecido um dos segredos mais bem guardados nos círculos da teoria crítica, dos estudos culturais, do pensamento político, da crítica literária e artística. Estando isto a dever-se a duas circunstâncias capitais: à qualidade fragmentária e inacabada da obra, de que continuam a extrair-se debates insuspeitados mas fecundos;  e ao modo, soi-disant, zeloso como nomes eminentes do pensamento foram alcandorados ao papel de guardiões do autor, sem nada lhe acrescentarem que não inscrevê-lo numa ou noutra tradição, e de que o exemplo acabado talvez seja o de George Steiner. No panorama da recepção de Benjamin em Portugal, o quadro não foi diferente, com algumas falsas partidas que passaram por traduções desinformadas, até desaguar no protectorado de um tradutor-prócere que de tanto querer fixar em português o idioma de Benjamin, acabou por renegar o termo que mais se lhe associou, e que todas as traduções em línguas neo-latinas adoptaram: a reprodutibilidade técnica.

Não obstante o recorte de true scholarship com que Maria João Cantinho compõe os ensaios de Cosmopolitismo e Rêverie (com respeitável aparato bibliográfico e filológico), e da atmosfera cultíssima que eles respiram, este é um livro cuja leitura não pode ficar dividida entre a dos 'iniciantes' e a dos 'iniciados', mas deverá antes fazer um caminho de discussão alargada, e alcançar, por isso, os muitos e melhores leitores que lhe são merecidos, na linha do que acima se designou como propósito de abertura. O ensaio que melhor cumpre esta missão é precisamente aquele em que Cantinho abre Benjamin ao diálogo com outras doutrinas, no caso, as que se reclamam do debate escatológico ou epocológico dos pós-marxismos, pós-modernismos, pós-história, pós-tempos e fim-dos-tempos. Falamos do fertilíssimo «O Acordo Secreto: uma Leitura Derrideana de Walter Benjamin» [p.75-103], no qual a autora, munida do travejamento teórico de Jacques Derrida em torno das sucessões históricas (vulgo ‘revoluções’), nos oferece uma formulação cristalina do que se espera do tempo messiânico de que fala Benjamin. Assim nos diz a autora: «[t]ratando-se de uma herança que nos foi legada pelos nossos antepassados, apenas podemos reclamá-la enquanto responsabilidade, enquanto “pagamento de uma dívida”, uma vez que fomos esperados sobre a terra (…). É uma tarefa da memória, ou antes, da rememoração dos vencidos, uma tarefa de lutar contra o seu esquecimento e libertar/ redimir o seu passado, no presente, como reactualização» (p. 97).  Impõe-se assinalar, aqui, o quanto esta leitura se presta à desminagem do actual discurso sobre cataclismos e catástrofes, dizendo, pois, que sem rememoração [Eingedenken] não haverá restituição da justiça (para dar a exacta medida da necessidade que há neste trabalho de Maria João Cantinho, veja-se artigo recente na imprensa [«Lições do alarmismo climático»], onde o cronista se fazia uso, no contexto dos alarmismos, de um entendimento do messianismo de Benjamin afim ao que corre em Cosmopolitismo e Rêverie).

Composto por oito ensaios, dois dos quais dentro da linha mais reconhecível  do ensaio biográfico («Hermann Broch: o poeta relutante» [p.151-179] e «Lou András-Salomé: a mulher que encantou Nietzsche e Freud» [p.183-200]), Maria João Cantinho inscreve Cosmopolitismo e Rêverie num género de publicação que foi perdendo espaço no contexto das edições portuguesas, ou quem sabe nunca o terá ganho, e que se refere essencialmente ao catálogo de afinidades literárias, teóricas e filosóficas que um escritor – no caso, uma poeta – dá a saber ao mundo. Mas com Cantinho, será justo dizer que ante o fôlego ensaístico que empresta às peças-artigos deste livro, arrisca uma muito irresistível pièce de résistence. A título de exemplo, veja-se a intrepidez com que trabalha a «imagem dialéctica»,  um dos mais estimulantes conceitos de Walter Benjamin, e em torno do qual, de resto – e descontando talvez a deselegância –, a autora é versada. Basta apontar o modo sempre tentado e renovado (‘ensaiado’) com que vai vertendo o convoluto «aufblitzendes» benjaminiano. Neste livro surgem três soluções: «relampejo», «fulguração», «relâmpago». E nisto, há um irrecusável brilhantismo.      

JBC

01 de setembro 2023 

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