. palcos . teatro .

A República Alexandrina

de Pedro Saavedra

por O Fim do Teatro

. Teatro da Malaposta .

repõe no

Auditório Municipal António Silva, Cacém

 

Duas portas para entrar e uma para sair

 

 

O trabalho mais recente desenvolvido pelo projecto teatral O Fim do Teatro, resultou num objecto cénico heterodoxo. E é assim não porque A República Alexandrina – é este o título que leva –, apresentado no Teatro da Malaposta (entre os passados dias 20 e 30 de Jan.), tenha de alguma maneira praticado qualquer heresia contra os códigos da expressão dramática. Mas simplesmente porque o texto e a encenação de Pedro Saavedra testam dispositivos dramatúrgicos que conflituam entre eles e deixam um travo a experimentalismo desequilibrado. O que, nesse desígnio, fez perigar a pujança de uma sanha à “teatro-de-intervenção” – ou, para não ser tão pesado, à “teatro-de-denúncia” –, que, tudo indica, está no espírito desta criação. Semelhantes estratégias arrastaram A República… para um registo de paródia, por vezes pitoresca, quando teria sido preferível grotesca, e que anulou por completo as intenções político-pedagógicas de que estaria investida, já tão raras de observar nas dramaturgias contemporâneas muito lambidas pela experiência do drama em gente.  Sucedeu, então, que o efeito final aproximou-se mais do espectáculo televisionado, do que da arena corpo-a-corpo.   

A República Alexandrina apresenta virtudes estimáveis, que lhe trazem triunfos vários. Um enredo brilhante, cuja história seria desavisado revelar, e que faz saltar o espectador, numa simples mudança de luz, de uma sala de chá dançante para a tenda imperial de Alexandre da Macedónia. Ou seja, do bairrismo paroquial para as grandes narrativas da civilização. E depois, de volta. Há ainda um jogo prodigioso com o visível e o invisível, os quais estão no código genético do teatro, arte maior: entre a proclamação pública e o obsceno [o 'fora de cena']. A peça põe-nos a todos a apreciar uma pintura que se não vê. E por fim, uma enorme perícia no andamento dos tempos da acção, entre prolepses, analepses e elipses não sinalizadas, que é uma das grandes cartadas desta peça.

A linha de equilíbrio instável de A República… está no recurso a uma voz off proto-cinematográfica, e que, enganadamente, mais não faz do que uma locução televisiva. O texto de abertura é um trecho belíssimo, com um aprumo ecfrástico (descrição visualista) irrepreensível. Mas rapidamente se esgota numa lalação dulcificada, com a insistência num registo vocal soporífico de mais para ser coisa de agit-prop. E quase como manifestação dessa má consciência, as palavras vão adquirindo um teor superlativista, ao ponto de ouvir-se falar em vermelho escarlate. Bastaria um deles.

A partir daqui, A República Alexandrina não supera a colecção de trouvailles, umas que elevam, outras que aborrecem. A entrada em cena da personagem do Dr. Lévy, como um Buster Keaton gerontificado, é um dos momentos mais comoventes que ultimamente pôde ver-se em teatro. E que não afirma, nem confirma, simplesmente aclama Rogério Jacques como um dos mais talentosos actores da geração dele. E talvez ainda com aquele saborosíssimo grano salis de ser um actor secreto. As actrizes Alice Ruiz e Ivone Fernandes-Jesus emprestam às personagens da Primeira Directora da República, Alexandra Prestes Brandão, e sua Secretária, Helena Stuart, um intimismo muito afinado, no limiar da fragilidade, que torna esta A República… um pouco mais perturbante, porque mais humana. Já o diálogo entre a Mulher-de-Rua e o Agente-Imobilário, ao tentar uma certa leveza, não deixa de ser apenas embaraçoso. A simetria que é feita entre o Barão Bel Varga e o pai de Alexandra, ambos pela mão de um Mário Redondo posto em apuros para libertar-se de lugares-comuns, simetria que atinge o requinte cromático (um de figurino preto, outro de branco), acaba apenas por ser a versão já muito vista do fantasma e o seu outro lado.

Há ainda uma pecha que atravessa este trabalho do projecto O Fim do Teatro, e que apesar de lhe dar um toque enérgico, logo mostra o que tem de facilitismo. Trata-se da insistência da encenação em sabotar constantemente o curso dos acontecimentos, quem sabe para que a plateia não se acomode. Qualquer coisa que terá ficado do convívio ou com os brechtianos de quinta geração, ou com a cultura streaming.

Entre as categorias discográficas de alternativo e de vanguarda, as grandes novidades não passam por est’A República… Mas merece a pena lá ir. Nunca se deve perder a oportunidade de ir ver um Veronese. Mesmo que numa reprodução de sociedade recreativa.

JBC

2 fevereiro 2022