ENQUANTO O CÉREBRO VAI E VEM

>> Havia uma disposição positivista nesta mancebia entre a vocação médica e a literária, baseada na ideia de que o conhecimento ad corpore humano, era a via mais alumiada para a celebração da physis humana, vulgo natureza humana, objectivo maior da humaniora [“os estudos humanos”], âmbito irresistível das belas letras.<<<

. livro  . ensaio

O Melhor Duplo

de

Paulo Bugalho

[Língua Morta, 2024]

Enquanto o cérebro vai e vem

 

          Há uma figura na produção literária de novecentos, a quem foi outorgado um salvo-conduto de circulação pelo milieu da literatura, mormente pelos ringues da prosa e pelas alamedas da novelística, e que outra legitimidade não teve que a de reconhecer-se-lhe uma proto-autoridade científica. Trata-se do médico escritor, que na literatura portuguesa recua ao século dezanove, e ao realismo educativo de Júlio Dinis, ao naturalismo decadente de Fialho de Almeida, e avança, no século vinte, pelo agro-existencialismo de Miguel Torga, pelo neo-realismo perfumado de Fernando Namora, e desagua no polifonismo tardo-moderno de António Lobo Antunes, passando ainda, com um módico de benevolência, pelo irmão, João Lobo Antunes, no registo memorialístico e ensaístico de sabor passadista. Na verdade, o médico escritor é personagem que traz a marca de distinção que lhe dá o cânone da literatura francesa, isto por força do impacto que teve o «naturalismo científico» de Émile Zola, que tinha na descrição das patologias fisiológicas, no retrato dos estados clínicos, e no teatro da intervenção médica o nec plus ultra da condição humana sob o ar pesado da modernidade progressista. Zola, cansado do humanismo estéril dos homens de leis, e dos políticos, que se tinham alçado a escritores-pátrios, à maneira de Victor Hugo, fez remontar a tradição do médico escritor a Rabelais, e celebrou assim o filão onde vieram a impor-se Louis Aragon, Georges Duhamel, Louis-Ferdinand Céline, e já de outra longitude, mas que a França praticamente devorou como filho seu, Anton Tchekov, o médico do mal-estar russo. Havia uma disposição positivista nesta mancebia entre a vocação médica e a literária, baseada na ideia de que o conhecimento ad corpore humano, era a via mais alumiada para a celebração da physis humana, vulgo natureza humana, objectivo maior da humaniora [“os estudos humanos”], âmbito irresistível das belas letras. É certo que a actividade da medicina proporcionava aos que a praticavam uma exposição permanente à realidade social, económica e anímica dos outros, e uma compreensão mais fina do mundo, não tanto pelo modo como eram formados do que pelo modo como eram informados. Do médico escritor, esperava-se que fosse um retratista mais fiel da alma humana, e daí, também dela um bom salvador. A sublimação desoladora desta figura tivemo-la às mãos do realismo soviético e mais o escritor como engenheiro das almas, que deu no que deu.  

          Observados os recuos que se impõem, e medidas todas as distâncias que previnam o equívoco de equiparar o não equiparável, Paulo Bugalho inscreve-se, ou irá inscrever-se, na tradição do médico escritor. Sucede porém que as vicissitudes que à medicina se têm vindo a oferecer, não apenas enquanto disciplina científica debulhada numa catarata de especialidades que a deslassaram, mas também enquanto prática sócio-antropológica seviciada pelos grilhões da bioquímica, da imagiologia e da farmacologia, o médico escritor goza hoje apenas de um fundo de prestígio muito descapitalizado de referências humanas não lapidadas, e que anda apenas alimentado por recursos autorreferenciais já muito gastos, ora colhidos na vida profissional, ora na vida social, nada o distinguindo daquilo que poderá ser o jurista escritor, o político escritor, o jornalista escritor, o homem-de-negócios escritor, e toda a ganga auto-biográfica que deles se desprenda. Bugalho, médico neurologista, clínico especialista em doenças do movimento e doenças do sono, é autor de A Cabeça de Séneca (2011), um primeiro romance faceto, cujo enredo se baseia numa conjectura contra-factual cheia de fortuna romanesca, mas que não logra subtrair-se a um auto-biografismo sem rebuço, ou escapar às novas andanças da auto-ficção American style, com um protagonista que é «alguém do mesmo métier»[i], médico, e que vagueia por uma constelação de exaustíssimos lugares-comuns classistas, salpicados por um realismo serôdio. Desde um duplex no Areeiro, à «vasta biblioteca que [ocupa] boa parte do piso superior da casa, onde [há] uma varanda virada à serra [de Sintra]»[ii], ou ainda por entradas do metro com «mendigos de barbas muito compridas, (…) um casal de toxicodependentes, emagrecidos e sujos, (…) três tipos com mau aspecto, bebendo cervejas por garrafas de litro, (…) faces fechadas e sérias, (…) veias grossas nos antebraços, tatuagens toscas, mal desenhadas sobre a pele escurecida»[iii], e finalmente «no interior [de um taxi, onde] o taxista palitava com veemência o recuado molar – abria muito a boca, como se bocejasse» (idem), e «o trânsito aliviara, (…) a avançar a uma velocidade razoável, por entre a decadência burguesa das casas de Fernão Ferro»[iv]; tudo numa prosa que arranha um Camilo-revival e um Agustina-makeshift bem dominados, o que não deixa de resultar numa ousadia afortunada do romance, mesmo que o estilo se ressinta de torções sintácticas desgraciosas, onde a evitação da conjugação pronomial é calamidade de monta: «sorriu para eles e não esboçou qualquer outro gesto»[v]. Há a dizer com justiça, porém, que em A Cabeça de Séneca reside, ao capítulo segundo, um retrato superlativo, e por isso antologiável, de um dos topoi obrigatórios da cultura portuguesa na passagem do milénio, mais propriamente da cultura lisboeta: a saída à noite no Bairro Alto, ali representada com destreza dramática e com uma verve neo-expressionista pouco vistas noutras tentativas. Mas o que mais descoroçoa em A Cabeça de Séneca é que o assunto da predilecção do protagonista, e, por arrasto, do próprio autor, seja tratado com uma ligeireza diegética e uma carestia imagística que só é compreensível no escritor que pretenda cultivar reservas:

Deixara de pensar em si próprio (estava cansado). Mas mesmo assim o sono não vinha. Continuava atento a coisas várias, pormenores insignificantes, que desfilavam à sua frente como haviam desfilado, muito distantes, as imagens da Almirante Reis. Retratos dessa noite e de outras, coisas desconexas. O fenómeno do sono intrigava-o desde pequeno. Que pena não ser possível assistir ao desligar da consciência, ao interromper da corrente contínua do pensamento, que nenhuma vontade controlava e que não era possível suspender voluntariamente — era necessário esperar que chegasse o ladrão.[vi]    

E portanto, se é assim que o médico escritor, especialista do sono, devolve a não chegada do sono, como o ladrão que se quer apanhar numa passagem de um livro juvenil, talvez esteja a conversa acabada.

          Mas não. Depois do primeiro romance, e de se ter dedicado à recensão crítica de ficção, Paulo Bugalho publicou O Melhor Duplo, sobre Sonhos, Cérebro e Outra Ficções (2024), cujo argumento único, no limiar da idée fixe, surge cedo no livro, e quase se repete como um refrão: «é do cérebro (…) que partem os sonhos» (p. 9). Livro raro no panorama dos géneros que se praticam na edição em Portugal,  e corajoso no propósito científico, além de astucioso na tese que encerra, está porém diminuído por uma candura filosófica mortal, a menos que o autor estivesse a braços com uma clivagem na percepção dos leitores a que queria chegar, e ora, por um lado, estivesse certo de que o leitor está familiarizado com o conceito de «dor fantasma» (p. 15), ora, por outro, se sinta na necessidade de explicar, num passo escolar confrangedor, a diferença entre ontogenia e filogenia. É possível que a candura filosófica de que aqui se fala, seja apenas o reflexo de uma má-consciência de classe. No caso, já não do médico escritor, mas do médico tornado cientista escritor, cujo apetrechamento reflexivo sobre o que ocorre para lá da ratio científica está condicionado por ela mesma, o que merece o libelo de progressismo autotélico: a ciência far-se-á a ela mesma. E, segundo o autor, sempre com entusiasmo ortopédico, pois que «parece óbvio: os mitos escrevem torto o que a ciência endireita» (p. 236). Bugalho disfarça essa candura de humildade científica, mas a ideologia jactante do cientificamente provado, esse mantra do século passado, surge em nu integral. E assim se lê:

[A] verdade às vezes também é bela e é isso que mostra este arribar tardio da ciência ao sítio de todas as perdas [a religião, os mitos, os sonhos]. Com o que a ciência traz de luz e com o que a ciência traz de incerto./ Desiste do novelo, a ciência, em vez de se perder a desenredá-lo, e parte para outra forma de juntar as coisas (…). As soluções que a ciência traz não têm de matar o mistério, o lado puro das crenças, mesmo que acabem por remetê-lo como fera esquiva às prisões da arte. O seu trabalho é acrescentar caminhos ao segredo, a via directa que ilumina, repentinamente, produzindo um sistema novo: onde depois é possivel pousar mitos modernos, religiões inéditas, até que para estas haja, noutro avanço de luz, uma segunda solução, outra visão mais clara. No que toca aos sonhos, o recurso da ciência foi esquecer o íntimo. Onde Freud, o último dos sacerdotes, se esforçou ainda para encontrar um símbolo, a tradução mítica quando já os templos tombavam e todos os deuses morriam, a ciência veio propor o geral. Não podendo partir senão da mesma fronteira imóvel, que é e será sempre a de uma narrativa (porque é sempre uma história que trazemos, quando regressamos da noite), a ciência avançou no seu modo habitual, descrevendo os sonhos como fenómenos, objectos decomponíveis, com peças que eram comuns à espécie (às espécies) e dependentes da mesma casa vital: o cérebro. (p. 8-9)

Assinalada que fica a diatribe anti-freudiana (a que está reservado um capítulo cujo título, e mais a sua requentadíssima paródia, não é apenas um delito de gosto, é um desígnio programático, «Morra o Freud, Morra, Pim!»), Bugalho não se inibe a considerações de natureza epistemológica com uma extemporaneidade temerária:

Freud gerava uma hipótese e até essa parte, que num artigo ocuparia hoje a introdução,  ainda são admitidas fantasias, frases de efeito, presunções heróicas. É a partir daí que o caminho se cobre de pedras (...). Na investigação clínica, as explicações passam a ser sobre instrumentos, número de sujeitos avaliados, controlo de enviesamentos, enfim, todo um mundo de aborrecimentos técnicos, tanto mais sensaborões quanto nos faltar a particular imaginação dos cientistas, que tende a encontrar no pormenor mecânico motivo para uma excitação quase erótica. (…) A soma salda-se numa lista de atentados em série contra a metodologia científica, da qual nos limitaremos a avançar apenas alguns exemplos: pobreza da amostra, tanto em número de doentes como na fraca representatividade dos mesmos, confusão entre observador e observado, total ausência de experimentação, inexistência de grupo de controlo, nenhuma tentativa para gerar um instrumento de análise que escape ao subjectivismo do interpretador. Para quem reúna o mínimo de amor à ciência, não pode senão parecer absurdo que o médico se apresente como caso clínico à sua própria disposição. (p 56-57)

Cabe então recuperar a famigerada boutade de que há que defender Sigmund Freud dos seus leitores. Anteriormente, dos que o liam com devoção, agora, apenas dos que o lêem por enfado. Bugalho, em seu seguidismo nabokoviano, lança sobre Freud a acusação de charlatanismo científico, desonrando a quantidade de trabalho clínico e o manancial de matéria infra-para-&-ultra-científica que Freud não malbaratou, antes recolheu, compilou, analisou, publicou, fez circular, discutir, avaliar e refutar pelos seu pares, tendo deles aproveitado as objecções e o contraditório, e promovendo um círculo de debate, que deu a volta ao mundo, sobre os seus achados e a disciplina que fundou: se método mais científico haveria au fin-de-siècle? Não é outorga suficiente ser-se cientista para discorrer com propriedade sobre ciência, haverá evidentemente, ainda, que versar a história da ciência e observar a filosofia da ciência. E quanto à rejeição sobranceira, ou talvez antes ignara, ou apior ainda, demagógica – típica das ciências experimentais –, aquela do cientista que se toma a si mesmo como objecto de análise, foi há muito ultrapassada e combatida pela fenomenologia e pela filosofia analítica, plasmada na figura irredutível do matemático, o cientista terminal que tem na sua própria consciência o único instrumento e objecto de trabalho.      

          Mas a supina desfeita que pode fazer-se a O Melhor Duplo é, paradoxalmente, lê-lo em chave científica. Se para isso formos convocados, acabaremos apenas a ler um livro competente e culto de divulgação científica, sério nas demonstrações a que se propõe, e documentado com escrúpulo sobre os factos e episódios que relata. Acabarão talvez a ser esses os seus momentos de glória. O capítulo «O Filho de Aserinsky» (p. 35-45), sobre a identificação do sono NREM e do sono REM, está escrito com elegância cativante e permanecerá na memória, até como peça literária. O relato da experiência desarmante de Allan Hobson, «cientista dos sonhos» (p. 66), com travo a reductio ad absurdum, faz antes mais uma denúncia pungente das dificuldades em fazer ciência, do que verdadeiramente um apelo ao entendimento dos fenómenos oníricos, e que acaba a equiparar-se àquela outra, que ali não se conta, do neurocientista Matthew Walker, sobre a resposta que dá acerca do sentido dos sonhos que cada um dos alunos lhe conta, sempre a mesma: «I know exactly what your dream is about. (…) Your dream is about time, and more specifically about not having enough time to do the things you really want to do in life».[vii] Este ímpeto narrativo, que Bugalho alimenta quase como contista, tem um momento altíssimo em «O Princípio da Realidade» (p. 131-142), com as histórias cruzadas entre o adoecimento de Alfred, o pai no romance Correcções, de Jonathan Frazen, e o modo como foi descrita, e documentada, a doença paralysis agitants, pelo «activista político» inglês, James Parkinson, que postumamente lhe deu o nome, e que é, afinal, a doença que porá Alfred num lar. A fortuna destes expedientes narrativos obnubila qualquer chispa ensaística que em O Melhor Duplo possa vislumbrar-se, e que a bom ver ele não tem. Não há ali fôlego que sustente a problematização que um ensaio exige, sobretudo porque está mais orientado para a demonstração de factos e a postulação de princípios, do que para a perspectivação de horizontes. Deve-se isso também à natureza sobredeterminada da tese que é a dele. Uma tese a que, com sanha eufemística, emprestaremos o francesismo de malin, quando, desprendidamente, o que queremos dizer é: uma tese espertalhona. E que diz, ou melhor, que glosa: afinal os sonhos sempre prevêem o futuro.

          Apresentado no artigo científico «Do dreams tell the future? Dream content as a predictor of cognitive deterioration in Parkinson’s disease» (2021), que Paulo Bugalho publicou, com nove outros autores, no Journal of Sleep Research, o achado da tese diz que quem sofra de Perturbação do Comportamento do Sono REM [“PCS-REM”], descrita como a afecção dos «doentes que bracejam no sono, [e] que se apresentam ao neurologista queixando-se de que agrediram sem querer [um] ente querido enquanto dormiam, porque estavam a responder a um pesadelo» (p. 231) – resultado de não se verificar o bloqueio da motilidade que ocorre no período do sono REM, período no qual os sonhos são mais vívidos –, virá no futuro a desenvolver a doença neurodegenerativa conhecida como Doença de Parkinson. Na verdade, não como causalidade, mas antes como antecipação, ou processo anterógrado. Ou seja, no limite, a “PCS-REM” será já a Doença de Parkinson numa fase precoce. É por isso que a tese de que aqueles sonhos são preditivos, quererá apenas ser atrevida e parodiar o mito, que é afinal o golpe mais censurável que o cientista pode infligir à lenda. E repassado de optimismo terapêutico, lá sintetiza o médico escritor um precipitado de pompa filosófica que exige aconselhamento dietético, e que mais não faz do que trivializar a ciência:     

Contribuindo para o modo como actuaremos no futuro, os sonhos acabam por intervir na realidade, moldando-a porque interferem no indivíduo, e este participa dela, enquanto peça movente da grande máquina universal. Para formular esta ideia de outro modo, digamos que o sonho consegue prever o futuro porque é capaz de produzi-lo, ou seja, de participar no comportamento do indivíduo e na sua acção no mundo: neste sentido, os sonhos são profecias que se cumprem a si mesmas. (p. 232-233)

          É um namoro antigo aquele que as neurociências e as ciências do cérebro mantêm com a filosofia, os filósofos e a literatura, e que parece até fadado a um casamento com comunhão de bens e constituição de uma personalidade jurídica com sujeito único, qualquer coisa que resulte entre uma absorção, anexação ou endocitose, e cujo celebrante mais requisitado tem sido António Damásio, de tal jeito, que o último instituto a que à filosofia restará dedicar-se, em afectação escatológica, tudo indica que seja o cérebro. E se o século dezanove foi o século do sangue, o século vinte, o século do átomo, o século vinte e um será o século do cérebro, para com pompa responder à pompa.  No entanto, um pensamento com um pingo de sofisticação filosófica, da linha fenomenológica, por exemplo – de uma fenomenolgia da percepção à Merleau-Ponty («a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las»[viii]) –, asseverará aquilo que é mais ultrajante para o biologismo do cérebro com o seu fetichismo científico: o cérebro é um produto da cultura. E é porque a cultura organizou o mundo à nossa volta à medida das sensações e das percepções visuais, que os sonhos são predominantemente tidos como visualistas, e esteja o sono REM, por isso, essencialmente associado à produção onírica de imagens; quando estudos há já que demonstram uma actividade nos músculos do ouvido médio, os quais parecem operar durante o sono de igual forma à que quando ouvimos em período vígil, e cujas contracções chegam a ser mais fiáveis na demarcação do sono REM do que o próprio rapid eye movement, abrindo pois a possibilidade de uma muito fina dimensão aurática dos sonhos[ix], ou seja, escutar vozes, perceber ambientes, o que é, culturalmente, talvez bastante mais inquietante do que ver imagens. É porque a organização cultural da passagem do tempo estabeleceu uma dada sequência teleológica, que o cérebro e os sonhos, mesmo os hipermnésicos, estão orientados para o futuro. Porque a bom ver, dirá o fenomenólogo rebatendo a tese de O Melhor Duplo, a Doença de Parkinson não é o futuro dos sonhos da “PCS-REM”. A “PCS-REM” é antes o passado, ou o antepassado da Doença de Parkinson, e, como tal, deve ser entendida enquanto artefacto arqueológico, enquanto fenómeno filológico, e a ciência sabe tão bem quanto a filosofia o que a ‘arquê’ (arché/ ἀρχή) e o ‘filo’ (phylum/ φῦλον) fazem juntos: falar do começo das coisas. Aliás, e é essa a incomparável galhardia do trabalho do sonho que Freud põe em marcha em A Interpretação dos Sonhos, o “presente” dos sonhos é sempre o passado.

          Falhar-se-á uma das fruições mais gratificantes na leitura de O Melhor Duplo se não se destacar do cenário científico a brilhantíssima pele literária com que está revestido. Surgirá até talvez como um álibi para demonstrar como a associação do discurso da ciência com o discurso das artes não tem necessariamente de resultar num guazzabuglio esotérico, ou obscuro, quando não apenas pedante porque postiço. Há inteligência, sensibilidade e conhecimento no amplíssimo elenco de obras literárias, e respectivas passagens e autores, que Paulo Bugalho convoca para discutir as observações, as conjecturas e as teses sobre o sono e os sonhos. Acontece que nem tudo se equivale, da mesma maneira que nem tudo é aproveitado de forma sempre dextra, o que faz do livro uma peça em equilíbrio muito instável. E passando a ociosidade da quantificação, numa contagem muito por alto, são cerca de meia centena os nomes de escritores, pensadores, ensaístas, artistas e poetas que ali se desfilam como figuras de vulto de um certo cânone literário. Que esse cânone seja essencialmente o decalque de um índice dos suplementos literários de certo prestígio, mas também de grande circulação, será até compreensível para quem pretenda, afinal, divulgar ciência. Que se detenha em estações obrigatórias da Weltliteratur, como Ariosto, Montaigne e Shakespeare (de que preteriu o sono e o sonho de Sly no primeiro acto de The Taming of the Shrew em favor do já tão mastigado Hamlet), não oferece reservas. Porém, a abordagem é insistentemente ilustrativa, e sempre de cariz episódico, quando não anedótico (ao ir buscar O homem do castelo alto de Philip K. Dick apenas para um considerando contrafactual deduzido das condições de saúde de Adolf Hitler), o que, somado ao conjunto de “notícias” sobre factos e descobertas científicas, resulta em dar a O Melhor Duplo um travo a digest, enfim, a almanaque. E quando se aproxima dos textos com mais detença, de um modo geral armado de superlativismos, ressente-se, de facto, de fraco sopro ensaístico, e chega a cometer deslizes indesculpáveis em análise literária. Há dois particularmente supliciantes. 1) Torcer o incipit de Du Côté de Chez Swann de Marcel Proust para elucidar as virtualidades, e bondade, do sono a horas certas, sobrelendo no «[l]ongtemps, je me suis couché de bonne heure», o “bonne heure” para lá do seu significado de “cedo”, mas como ainda «a boa hora» (“à hora certa” [p.  25-33]), esquecendo a homofonia, em língua francesa, entre «bonne heure» e «bonheur» (“felicidade”), pelo que, o muito proustiano estado de alma, só a felicidade dá bom sono, fica obliterado. 2) Quando pega em As Anotações de Malte Laurids Bridge de Rainer Maria Rilke, escolha acima de esplêndida, para citar o modo como Rilke descreve o suposto síndrome neurológico de uma personagem, síndrome já antes descrito, haveria vinte seis anos, pelo neurologista Gilles de la Tourette, o médico escritor resolve anatemizar Rilke com a suspeita do extractivismo: «não poderá ser excluído (…) que conhecesse os trabalhos [de Tourette], embora pareça pouco provável» (p. 52). Todavia – e são sucessos como os que se seguem que equilibram O Melhor Duplo –, quando Paulo Bugalho visita o romance Directa de Nuno Bragança, um trunfo inegável, fá-lo com desvelo crítico-literário, onde brilham aforismos de belo recorte à estudos culturais; diz do protagonista, ser um «católico sem fé e comunista de si mesmo» (p. 163), se não é esta a representação aliciantíssima de um sonho?

          Entre algumas gemas raras que abrilhantam o mosaico que a série de referências artístico-literárias compõe em O Melhor Duplo, das quais há a assinalar os menos frequentados Gilgamesh e Orlando Furioso, o médico escritor comete o pecadilho de revelar instâncias do seu gosto próprio, as quais, julgará, por povoarem a província da soi-disant cultura corrente, aproximarão o leitor, mas só traem uma certa presunção de prestígio, e deslustram tudo o resto. Estão neste pé, a convicção de que o melhor que a psicanálise concedeu à arte foi a filmografia de Woody Allen (p. 62), e a comparação do sono NREM, onde os sonhos são menos vívidos, a um quadro de Mark Rothko, enquanto o sono REM seria um quadro de Hieronymus Bosch (p. 77), o que não passa de uma imprudência estética, pois que não deixam de suceder fenómenos oníricos vivíssimos a quem vê uma pintura de Rothko, como ocorrem completos embotamentos sensoriais e mentais a quem vê um tríptico de Bosch.   

          O uso de recursos literários em O Melhor Duplo não se restringe aos achados de um leitor aplicado, às ruminações de um erasta dos livros, ou, menos ácido, às referências de índole bibliográfica de um amoroso da literatura. Bugalho utiliza estratégias diegéticas e figuras do discurso de um escritor experimentado. No capítulo «A História que Está por Vir» (p. 221-236), onde se explica o nexo entre a Perturbação do Comportamento do Sono REM e a Doença de Parkinson, o autor ficciona uma situação cheia de maravilha dramatúrgica, quase chaplinesca e mergulhada em atmosfera dirty-realism, transformando ainda o relato numa meta-ficção, com o narrador a explicar ao leitor a maneira como escreve o que está a contar, tornando-se também num narrador intruso e dialogante, pois que dá ordens e conselhos ao leitor sobre como agir. Um pequeno triunfo. Empreende ainda uma gesta aparatosa em demanda da metáfora mais cristalina para traduzir aquilo que o cérebro é, o qual muito dificilmente alguma vez conseguirá espanar a catacrese geométrico-geográfica dos hemisférios e promontórios. Bugalho não alcança coisa melhor do que a metáfora territorial, com o cérebro como um país a cartografar, com paisagens resvaladiças e fronteiras ignotas (se calhar, uma metáfora política), e afunda-se adiante, numa metáfora náutica corriqueira, ao falar do «início misterioso do encéfalo, o aposento mais baixo do [porão atravancado] deste barco cuja proa é a consciência: um sítio onde os passageiros nunca descem» (p. 29). E não se subtrai à canseira da metáfora arquitectónica para conjecturar a necessidade de uma norma geral do onírico, com «uma arquitectura comum, o mesmo travejamento, uma soldagem igual, uma geometria semelhante nos andaimes» (p. 115). Houvera antes o cientista escritor lido com deleite liberto o médico escritor Sigmund Freud, e teria encontrado, no exacto A interpretação dos Sonhos, metáforas intrépidas e luminosas, como «o trabalho do sonho requer (…) mais do que um dia e uma noite para atingir o seu resultado, (…) é como um fogo-de-artifício, que leva horas a ser preparado, mas se consome num instante».[x]   

          O Melhor Duplo não deixa de mostrar um desenho experimental sedutor, o que faz de lê-lo um exercício irresistível, mesmo que a prosa esteja salpicada por pequenos traços enervantes que lhe perturbam o estilo, como a tendência do autor para o hipérbato («o método compreendia deslocar-se o pesquisador a casa dos sujeitos» [p. 37], «tem esta fase vários degraus, uns de atordoamento apenas» [p. 41]), e o uso de um linguajar ora grandiloquente («mãos mais quentes que as nodosas falanges da ciência» [p. 53], «uma influência indelével» [p. 61]), ora com ditos de toada chistosa, se não canalha, sobretudo no que se refere a Freud (convocando a interpretação de um sonho de Freud pelo próprio Freud, diz «damos lugar aos aos especialistas, sempre» [p. 99]). Dá-se o caso, porém, que para os que são leitores de Freud, o livro de Paulo Bugalho oferece uma recompensa muito grata e granjeia um reconhecimento insuspeito: ao inscrever-se inconfundivelmente na tradição do ensaio de gosto estético irrigado pelo discurso da ciência, e que Freud, não o médico escritor, não o ensaísta especulativo, não o psicanalista, não «o último dos sacerdotes» (p. 9), mas o escritor tout-court e en bloc inaugurou com o ensaio «Das Unhemliche» (nunca aqui mencionado), e onde está explicada uma das ocorrências que mais se estranha no trabalho do sonho, o de duplicar [«Der Doppelgänger»[xi]] a realidade que se conhece – aquilo que é familiar – envolvendo-a numa aparência refractada, ou seja, que a pouco se reconhece. Esta afinidade, mesmo que inopinada, faz de O Melhor Duplo um melhor livro.

JBC, Dez 2025

Nota: edição elegante da Língua Morta; apesar de não ser publicação académica, e de não ter de respeitar as normas formais das referências bibliográficas [que surgem, sem reenvio directo, mas de forma acessível e económica no final do volume], a mancha de texto ressente-se de não cumprir a regra do destaque quando as citações ultrapassam o número de linhas recomendado, o que compromete a distinção entre o que é citado e o que é redacção própria.       

[i] Bugalho, P. (2011). A Cabeça de Séneca. Gradiva (p. 75).

[ii] idem (p. 47).

[iii] idem (p. 41).

[iv] idem (p. 149).

[v] idem (p. 26).

[vi] idem (p. 42).

[vii] Leader, D. (2019). Why Can't We Sleep: Understanding Our Sleeping and Sleepless Minds. Penguin Books Ltd (p. 108).

[viii] Merlau-Ponty, M. (1992). O Olho e o Espírito. Vega (p. 13).

[ix] Cf. Leader, D. (2019). Why Can't We Sleep: Understanding Our Sleeping and Sleepless Minds. Penguin Books Ltd (p. 95).

[x] Freud, S. (2019). A Interpretação dos Sonhos. Relógio d’Água (p.410).

[xi] Freud, S. (1919). «The “Uncanny”». First published in Imago, Bd. V., 1919; reprinted in Sammlung, Fünfte Folge. [Translated by Alix Strachey.] (p. 9)

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