. teatro .

«O Mestre»

concepção, texto e direção artística Maria João Falcão

criação e interpretação Maria João Falcão & Michel

produção número cinco associação cultural

[https://pt.numerocinco.org/omestre]

Galeria da Livraria Ler Devagar

 

Michel, o Mestre: revelação do ano

 

Para quem pensa que sabe tudo, ou nada, sobre a Livraria Ler Devagar, na Lx Factory, em Lisboa, autêntica gruta de um Ali-Baba bibliófago, e, seguramente, o bazar mais fotografado da Península, há notícias. É que nesta Livraria, existe ainda um outro compartimento, quase secreto, ali designado por Galeria. Nele têm tido acolhimento iniciativas de diversas expressões artísticas, mas cujos momentos de glória têm sido trazidos pelas, agora, assim designadas, 'artes performativas'. Enfim, teatro, dança, música, leituras vivas, recitais, concertos, you name it.

Esta política de acolhimentos, sem a tutela autoritária e tão temível, nos dias que correm, dos programadores, e desses 'predadores' da arte, os curadores, e ainda dos directores artísticos — figuras que estão para os artistas, como os tratadores estão para os animais no jardim zoológico –, tem, pois, permitido aquilo que quem se dedica à criação mais anseia. Um espaço de liberdade. Um lugar onde não há papelada, nem porteiros. Não há chefias de palco, nem ninguém que tenha a chave do camarim, e vá dormir com ela no bolso do pijama, quando se deita. Enfim, um lugar que é terra não conquistada pela miséria das instituições oficias de cultura (teatros nacionais e municipais, companhias com subsídios trintões do papá-Estado, galerias aplaudidas pela crítica de secretária, sob o olho do grande grupo empresarial).

É, assim, que, com esta iguaria fina, também se faz o projecto cultural activíssimo, mas quase clandestino, da Livraria Ler Devagar, e que já mereceria o reconhecimento das mais insignes instituições da nação. Isto com a devida comenda. Mas chegar a comendador, neste exacto minuto, é quase um “foge cão que te fazem barão”. Melhor deixar como está.

E agora imaginem que nessa “câmara de curiosidades” que é a Galeria da Livraria Ler Devagar, tivemos, entre 17 & 28 de Novembro últimos, uma peça acima de curiosa. Comovente. A autoria é de Maria João Falcão. Mas o protagonista, que, neste caso, merece o prémio de revelação do ano na categoria de representação, é a quem, no nosso espaço público, é devido nada mais do que o epíteto de “lenda viva”: o bailarino de sapateado, Michel. Ele, sim, merecedor da mais alta comenda, por ter trazido para o nosso panorama cultural algo de muito mais elevado e precioso do que as liberalidades pindéricas da telenovela transatlântica. Frescura e talento. Com cinquenta anos de carreira — assim, diz ele na peça —, mostra-nos a imensíssima humildade dos artistas sem dimensão. E em vez de simplesmente dançar, oferece-nos a faceta de músico, e, mais sério, quanto surpreendente: a de um actor de mão cheia.

Falamos da peça «O Mestre», que Maria João Falcão escreve, interpreta e encena. Em parceria com Michel. Podemos dizer que quem ali terá ido à espera de proezas com os pés e os sapatos, foi confrontado com cabeças portentosas a debaterem-se, inteligentemente, com uma das relações que mais assombra as sociedades contemporâneas: a do contacto entre mestre e discípulo. No caso, com a particularidade de sê-lo entre mestre e discípula. Maria João Falcão frisa-o, com a finura e a elegância que a personagem que interpreta exige, numa exposição de qualidades assinaláveis: senhora de presença impactante, actriz de dicção prodigiosa, figura de um porte aristocrático raríssimo nas nossas artes de palco [bebe chá, em cena aberta, acreditam?]. Ressente-se apenas de pose demasiado balética, e de um registo vocal um tanto doce de mais para a ocasião.

É que a ocasião é a da aula feroz que o Mestre [Michel] lhe dá sobre o «rigor do shuffle» [na verdade, assim deveria ser o título deste texto]. Ela sai-se esplendidamente. E deixa-o entregue à fatalidade de ter de juntar-se a ela. Para dançarem. Juntos. Mestre e discípula, ensemble. Aquilo por que todos ansiávamos.

O texto tem ressonâncias estimáveis do tom torturado de Thomas Bernhard, e um rigorismo beckettiano. Mas a palma vai, definitivamente, para Michel, quando, nesse instante revelador,  diz que, a seus olhos azuis — hoje, inesperadamente exóticos —, aquilo que lhe seria justo não era beber chá. Antes, champagne [e isto é dito com french touch]. O eco é o de um Oscar Wilde.

Uma vénia para Maria João Falcão. E um Palais Garnier de pé, a aplaudir o Mestre — Monsieur Michel. N’oubliez-pas: actor revelação do ano 2021.

Michel: não nos deixe.

Entretanto, na toca da Galeria da Livraria Ler Devagar, os rituais hão-de continuar.

JBC

novembro 2021