. teatro .

«A Força do Hábito» de Thomas Bernhard

encenação Nuno Carinhas

tradução Alberto Pimenta

pelo Teatro das Beiras no Teatro Municipal Joaquim Benite - Almada

 

 

O Bernhard das Beiras

 

Debaixo de regime pandémico, fomos ainda brindados, num só ano, com a mais amável das infestações. A descida do teatro de Thomas Bernhard aos territórios da grande capital. Só a ideia da descida de Bernhard à capital, haveria de encher as medidas do “austríaco-sem-medidas”. De resto, a quem foi acusado de ter cultivado uma estética dramática muito ao gosto desse epicentro da sensibilidade chique do teatro centro-europeu, o Vienna Burgtheater, vir da província, ou dos arredores, ocupar as mentes centralistas, todas capitaleiras, arrumadas nas cabeças de um público especializado, está acima de qualquer ironia do destino. É mais um: «como ousa?». Que pagode.

Thomas Bernhard não deixa, apesar de tudo, de inscrever-se nessa linhagem prestigiada de grandes escritores da Mittteleuropa, que tem na Kakania de Robert Musil a caricatura maior. Esse cadinho austro-húngaro que cozinhou Kafka, Schulz e até Cannetti. Mas mais do que ver-se a si mesmo como um “homem sem qualidades” — fórmula, daquelas tão gastas, que já nem encontra tradução certeira em língua nenhuma, nem na de origem —, Bernhard tinha-se, antes, como um homem de qualidades nada recomendáveis. Enfim, transposto para expressão mais crua, um homem com mau-feitio. E foi à volta deste humor, que alimentou a obra literária que empreendeu. Eis o que lhe assegurou os epítetos mais desconchavados, mas que ele recebeu sempre como condecorações excelsas. Desde, “artista do exagero”, a “moralista en poseur”, até ao, teoricamente requintado na pena de um George Steiner, «virtuoso da abominação».

No caso que aqui nos traz, o da obra dramática, há um dispositivo que é inerente a toda a obra deste género, e que Bernhard afronta com uma galhardia à beira da infâmia. Pois na qualidade de lugar de comunhão que deverá ser, em primeira instância, entre cena e público, no teatro de Bernhard, aquilo que se passa é muito mais do que a 'distanciação brechtiana' de um auditório a ser perturbado pela interrupção da mimesis aristolélica, com actores a invectivarem, olhos nos olhos, audiências burguesas de cabelos em pé. O teatro de Bernhard vai mais longe, e compõe um aparato idêntico ao do óculo publicamente escancarado para dentro de uma câmara de tortura. Mas sem qualquer pingo de voyeurismo.

Naturalmente que, em tempos de todas as correções, estas peças, a caminho do meio-século de idade, foram enfiadas na categoria estética de «teatro dentro da cabeça» [theater in der kopf]. Como se o que nos sequestrasse as ideias tivesse a desculpa de ser coisa que apenas se diz 'da boca para fora'. Ou, mais sério, como se nunca tivesse havido Freud, nem a talking cure. Acontece que as personagens de Bernhard não falam da boca para fora. Falam do interior de mentes torturadas pela pior das instituições. Aquela que todos nos pusemos de acordo em dizer: “é a vida...”. Endoutrinação com que Thomas Bernhard não compactua, e que denuncia.  Nada de um intelectualismo à la Beckett. Ora, isto, às mãos do teatro, torna-se numa infestação do espaço público. Qualquer coisa que, surpreendentemente, Hollywood nos habituou a designar por bigger than life.

Voltemos à infestação bernhardesca a que recentemente fomos expostos. Primeiro, tivemos, vinda do Cartaxo, uma trupe afinadíssima pela direção de David Pereira Bastos, a peça «Praça dos Heróis» [Heldenplatz (1988), CCB – 20, 21 & 21 Ago], o último texto dramático de Bernhard, que, ainda hoje, ou sobretudo hoje, nos deixa num arrepio espinal que demora dias a passar. Mais ainda, com a virtude de nunca ter antes sido representada em Português — em território português (tradução de Francisco Luís Parreira a necessitar de ser cotejada, portanto). É a última peça, mas nem por isso, a mais tragável. Nem a mais simples. O que acabou por ressentir-se em algumas prestações. Salvaram-se, com a merecida palma, a excelentíssima debitação de Manuel Coelho de um dos solilóquios mais perfurantes em décadas por vir, e que os antigos Gregos não enjeitariam; e ainda, a participação de Rita Loureiro, num ultra-bernhardiano cameo dela mesma, a oferecer-nos uma deixa de três palavras, no que é sempre a memória que dela guardamos nos palcos.    

Na semana passada [19, 20 & 21 Nov], em plena terra que, tão ideologicamente, se chama a si mesma a “outra banda”, o Teatro das Beiras trouxe ao Teatro Joaquim Benite, em Almada, pela batuta de Nuno Carinhas, uma «A Força do Hábito» [​Die Macht der Gewohnheit (1974)] cheia de força e muito à beira de todas as beiras. Um Austro-húngaro charmar-lhe-ia, talvez, “à beira do abismo”. Nuno Carinhas faz à peça de Bernhard mais representada entre nós, qualquer coisa de trans-bernhardiano. Não inova. Quase não encena. Mete-nos a todos dentro de um desses camarins que se tornam bafientos mal um teatro novinho em folha é inaugurado. E mais. Fica com a chave. Só no-la dá, em troca, se percebermos que, na verdade, e genuinamente — passe-se a redundância —, é uma banda de circenses de província que temos diante de nós: a mais bondadosa estratégia para uma encenação do teatro de Bernhard. Todos os actores estão ‘violentamente’ bem ensaiados: nos gags, na angústia, na frustração, na 'derrota´, na agressão. Não é fácil ensaiar ninguém para o fracasso. Mesmo que a fingir.

Duas notas finais de sinal contrário. Um Garibaldi [​Fernando Landeira], chefe de circo de província, mas não provinciano, que não esconde um toque da autêntica pronúncia das beiras, é um achado extraordinário. Mais, é uma pérola. Já ter transformado a personagem do Palhaço em Palhaça, mancha o texto de Bernhard com um travo misógino, que ainda possa encontrar-se no autor, nunca possuiu o homem. Um senhor que cultivou apenas amizades “com elas”. Deles, fazia sempre troça. Já se ouve Bernhard reclamar: uma actriz pode fazer perfeitamente um 'palhaço'?

JBC

novembro 2021