. arquitectura .

Todas as Direcções: Ricardo Carvalho Arquitectos Associados

 

Bárbara Silva

[curadoria]

Galeria Note . Lisboa

Exposição 8 out 2 dez 2022

Seis vezes Três:

seis projectos, um desenho, uma maquete, um lugar

 

Em conversa com Bárbara Silva, curadora da exposição Todas as Direcções: Ricardo Carvalho Arquitectos Associados, conversa transcrita no catálogo, e isto numa passagem que pode ainda ler-se na folha da exposição, Ricardo Carvalho coloca-se a ele mesmo numa posição de contraste. Diz: «há uma responsabilidade no facto de alguns arquitectos serem uma alternativa a uma forma mais predatória de operar». Descontando a imagem à bon marché de ser-se “alternativo”, há na afirmação uma intrepidez programática assinalável que traz a marca da denúncia. No caso, por oferecer-se como contra-medida às práticas de uma actividade, a arquitectura – e com ela a construção –, que, na linha da frente do “projecto da modernidade”, fez corpo não só com o desencantamento do mundo, mas com a transformação do mundo e com as ruínas do progresso. É o que seguramente se esconde por detrás da expressão “uma forma mais predatória de operar”. E neste sentido, é já uma conquista desta exposição que ela se tenha dado a ver na linha das dissidências, partido que os arquitectos da tradição das vanguardas (insuperável oxímoro) tomaram com galhardia, e com que muito contribuíram para recortar a figura do arquitecto anti-establishment (o Howard-Roark-Fountainhead), mitologia fundada sobre visionarismos e utopismos formidáveis. Naturalmente, aquela afirmação de Ricardo Carvalho está dirigida sobretudo ao regime económico dominante, que não diferentemente de qualquer outra área, condiciona a produção da arquitectura, distorcendo-lhe alguns dos princípios. E portanto, “predatório” quererá dizer muitas outras coisas, algumas politicamente conotadas, mas de que a mais saliente será “hegemónico”.

Interessa, porém, vincar, e será isso que atravessa o espírito de Ricardo Carvalho quando ainda ali apela para o ethos da “responsabilidade”, que ao arquitecto cumpre também objectar. Ou, talvez menos exuberante, não compactuar. Com as lógicas, já elas também muito batidas, ditas mainstream. Que uma exposição onde se mostram seis projectos – e uma conversa sobre ela –, alimente um debate que cinde a disciplina e a profissão, constitui glória assinalável, mesmo que o debate, afinal, seja já longevo, ou tenha raízes históricas e muitas armadilhas (do beaux-arts vs. industry, ao international style vs. vernacularism). E o quanto, hoje, a actualização desse debate está a ser feita sobre matéria vital (e.g. as condições ambientais), e não somente sobre aspectos formais (uma estilística), é mais do que um alarme. É um chamamento. Esta postura proto-doutrinal do arquitecto que ensaia um gesto Bartleby, I would prefer not to, ou, a bom ver, antes um “prefiro fazer como me dita a consciência” do que fazer como exige o mercado, assume riscos respeitáveis. Um deles refere-se ao acesso à encomenda, discussão para ser levada por outras vias, mas na qual está em jogo uma divisão funesta entre as práticas autorais de uma arquitectura que não se livra do anátema de ter um pé no ‘artesanal’, e aquela outra arquitectura que a bate sempre no certame onde não há autores, apenas corporações.

Atelier BS, desenho

Mas o risco mais sério que aqui se coloca é o da verdadeira coerência, sempre lancinante, entre pensamento e acção. Todas as Direcções furta-se galhardamente a essa prova, porque Ricardo Carvalho compõe um figurino de expor o trabalho, pensando o que expõe, com uma delicadeza tão intransigente na relação entre meios e fins que não se duvide estarmos perante um exercício de levar a arquitectura para territórios de grande refinamento intelectual. Mas também de perícia no modus faciendi. E é de um exercício cristalino de verdadeira pedagogia que se trata: «[a] Exposição mostra seis maquetas, seis desenhos e uma colecção de doze fotografias dos lugares que deram origem aos projectos, registadas pelo arquitecto Nuno Gaspar. O desafio era contar um projecto apenas com um desenho» [in folha da exposição]. A partir deste dispositivo ‘em-recursos-mínimos’ (e note-se que aqui se enjeita toda a retórica já muito folclórica sobre minimalismos, purismos e racionalismos), e que é bom não associar tout-court à exiguidade do espaço da Galeria Note, desenvolve-se um processo visual e imagístico em que a arquitectura como actividade predatória parece estar em retirada. Não será ilegítimo dizer desta arquitectura, num raciocínio muito desafiante, que ela é engendrada por uma ontologia negativa: começa por não estar, começa por não ser. É isso que dá a ver o folio das fotografias dos lugares onde ela irá acontecer, mas onde de facto ainda não existe, estratégia de um fulgor tão desviado dos modos topofílicos de promover o objecto de arquitectura (a inserção na bela paisagem e a montagem sobre o ainda melhor enquadramento), que inocula em Todas as Direcções um fôlego de grande arte. Momento altíssimo da exposição, e desta ontologia negativa, é o desenho que ilustra o projecto do Atelier BS. Há que vê-lo, com certeza, para retirar dele todo o proveito de um desassombro programático que pode enunciar-se assim: “esta arquitectura não faz presas”. Mas só um sopro poético muito corajoso poderia concebê-lo como peça de uma exposição onde se mostra um real onde vai intervir-se. Neste desenho, de estranheza muito excelsa, mas onde pode reconhecer-se uma eidética platónica ainda mais rara, é o próprio real que está de saída, de tal jeito que o existente é deixado em suspenso. Pois que o lugar onde vai intervir-se não está lá em presença, não se vê, só em ideia.

Ricardo Carvalho, dissemo-lo, ensaia em Todas as Direcções um figurino de expor arquitectura desenhado com uma economia muito fecunda, e que está tingido por um reducionismo tão nobilitante que arrisca compor um cânone, e daí, recortar um gosto. Eis porque esta exposição deixa a circular a pergunta acerca de como poderá expor-se de outra forma depois dela. No caso, qual o 'Ricardo Carvalho' pós-Todas-as-Direcções.

  

*A prosseguir para além da exposição, e partindo para as exactas peças expostas e os projectos que elas apresentam, haveria que falar de um objecto maior, o muito magnético Pavilhão de Verão na Praia da Luz. Haveria; haveremos.

JBC

04 de dezembro 2022

folio de lugares, fotografias

Pavilhão de Verão na Praia da Luz, maquete