. livro  . poesia

Jugular Exposta

de

Rita Tormenta

[The Poets And Dragons Society, 2023]

Sobre miudezas e outras ocupações 

 

Este é um livro ocupado. No sentido de quem diz ter "coisas a fazer", encargos, trabalhos, apoquentações, tarefas acrescidas. Um livro atarefado, portanto. E para dar a exacta medida deste estado de alma, pouco haveria de mais emblemático do que o título do poema com que ele abre, precisamente, o muito programático «Preciso para mim das horas todas». No entanto, aquilo a que aqui está a apontar-se como um atarefamento, nada mais é do que um recurso retórico. E é isso que constitui o virtuosismo exigente, para não dizer arriscado, de Jugular Exposta de Rita Tormenta: uma amplíssima construção retórica com uma competência blindada. E retórica não com o significado do artifício fátuo e ilusionista com que a política, a comunicação e as ideologias a torceram para os tempos de agora, mas antes como aquele labor filosófico faceto e sofisticado de que o pensamento e a literatura necessitam para tornar-se objectos de leitura além-contemplação, mesmo que destinado ao fracasso. Assim o poema o diz: «preciso para mim das horas todas,/ para desperdiçar neste exercício estéril,/ garimpeira de vocábulos» (I, 1). Não vá pensar-se, porém, que o que há de retórico anule aqui o poético, ou que retórica e poética se azedem num resultado deslassado. O que há sim, é um estrato retórico adamantino muito refinado, por vezes exasperante, que monta uma represa à poética da autora, onde pode não ser fácil penetrar. Ou talvez, através do qual a poética seja refractada como matéria oprimida.

Assim. O recurso retórico que está no centro de Jugular Exposta é a muito arrojada, mas nem por isso menos corrente, occupatio de Cícero. E é por isso que este é um livro ocupado. A occupatio, recorde-se, é aquela fala que diz, repetidamente, não querer falar do assunto acerca do qual tem de falar, ou, mais sério, que se recusa a falar dele porque crê que ele afronta toda a lógica, toda a existência, toda a sanidade, e que apela sempre para o respectivo excesso, o que no linguajar comum está resumido na expressão, «já para não falar…[do que prometeram]». O excesso de que Jugular Exposta não quer falar, e que se recusa a exprimir, é a poesia ela mesma. É isto que ocupa o espírito dos poemas, sobretudo na primeira parte do livro. Isto ao ponto de a poeta incorrer em equações não pouco suspeitas no que se refere aos termos postos em comparação, por aquilo que podem conter de uma lhaneza mal ensaiada. Leia-se: « Sou literal, nada em mim é poético./…A poesia é-me impossível e talvez por isso a persiga./ Sou literal, nunca serei poeta» (I, 4), como se a literalidade fosse casa onde a poesia não pudesse entrar, ou não tenha já entrado. Dir-se-á, quem sabe, que isto é talvez antes aquele amável jogo poético que usa frequentar a auto-negação e o paradoxo de ser-se quem se não é, apenas para efeitos de afirmação própria, e que não constitui pneuma de monta em poeta nenhum, cumprindo por isso aquilo a que se propõe. E que constituirá sim, e apenas, o continuado ludismo que atravessa a poesia de Rita Tormenta. O que já não se recebe com tanta benevolência é que no exacto poema em que a poeta se recusa à poesia, tenha uma transigência deslumbrada para com expedientes poéticos exaustos, como a invocação em name-dropping, “bon bon chic bon genre” [«Nalguns dias quero para mim um/ destino de Pizarnik, Sylvia ou Alfonsina.» (I, 4)], e ainda a metonímia-choque “à bon marché” [«Tenho extractos bancários no peito, penhoras na/ carne e falências pelo corpo todo.» (I, 4)]. A menos que sejam entendidos como práticas de uma elocução performativa quasi agit-prop, no que é uma ocorrência contínua ao longo de Jugular Exposta, e vai acusando um lugar de enunciação muito próprio, a sessão de poesia dita, onde o reconhecimento da comunidade dos leitores e dos ouvintes se alimenta, ainda, do trocadilho culto, que cai bem no stand-upper que trata Mrs Woolf por Virginia, sem usar o Miss, ou naqueles outros artigos da cronista da nação que escreve na última página há três décadas [leia-se: «O cabelo fez-se todo branco e ouvem-se pardas/ Marias em pranto.» (I, 18)]. É também por isto que a toada de Jugular Exposta, apesar do esplendoroso abismo existencial em que se coloca – o de uma ontologia negativa, ou o de uma agonística espiritual [no belíssimo verso: «Um aperto no estômago encerra o combate entre a/ mulher e o poema.» (I, 18)] –,  não é tanto uma toada reflexiva, mas mais uma toada coloquial. Aliás, a desmontagem silábica do literalmente esdrúxulo “solilóquio”, em «Sólos e Lóquios», para título da primeira parte do livro, descontando o que nele possa haver de didáctico, denota o quanto aqui há de uma muito conseguida poética palradora, cheia de fortuna circense, o que dá a Jugular Exposta um travo a coisa-que-já-não-se-faz. Estão ao serviço disto, duas figuras que Tormenta utiliza com mão maior, a enumeração e a anáfora, e que se combinam no poema «20. Sou», de modo imbatível, com aquele verso à O’Neill pelo qual valerá vir a ler Rita Tormenta para sempre: «Sou o não há nada a fazer.» (I, 20). Mas o tom coloquial está ainda cultivado em poemas de inesperado recorte dramatúrgico. É assim em «7. Arte abjecta», que reconstitui, a um tempo com graça e aflição, um telefonema fora de horas entre um artista e, não está dito, um guru. Acontece ali o retrato de uma desolação tão bem desenhada pela cadeia fonética das deixas e contra-deixas, que não é de estranhar ser-se transportado para um quadro de Edward Hopper ou para uma fotografia de Peter Hujar. Ressente-se apenas de o universo material que convoca ser da mesma natureza da de um sketch televisivo.   

Acontece porém que o recurso à occupatio ciceriana acaba, a certo ponto da composição de Jugular Exposta, por revelar-se insuficiente ao projecto de execração do fazer poético. Precipita-se então sobre ele um léxico proto-abjeccionista que lança o livro num equívoco que não perdoa. O de esta ser uma poética visceral. De tal jeito que, com o afã de conduzir a uma certa emoção do leitor, esta edição trai inexplicavelmente a envergadura do trabalho de Rita Tormenta, ao dar a ler na badana da contra-capa, expressões sonantes de uma vulgaridade sem desculpa, como por exemplo, «uma súplica sem filtros (…) para quem não teme (…) encontrar a beleza áspera da verdade». Melhor votar este Jugular Exposta a um exercício de inscrição. Deste modo. Em Gramáticas da Criação, George Steiner identifica uma “tópica” da grande representação literária do mundo que se encarrega de abominá-lo, ao mundo. Não como processo de destruição, mas antes como processo de recriação. Mormente para poder dizer-se dele aquilo que ele poderia verdadeiramente ser, e não aquilo que ele é, ou não. Uma estética da possibilidade, portanto, e não da verdade. Steiner dá o exemplo de três grandes virtuosos da abominação: Moliére, Jonathan Swift, Thomas Bernhard. O que fazem eles: suspendem a realidade numa bagatela. Em Jugular Exposta, Rita Tormenta é desta linhagem. Porque só depois de fazer toda essa grande jornada de epoché [suspensão do mundo] em torno da poesia, dissecando-a como quem disseca miudezas (I, 3), é que a poesia nela pode indiscutivelmente acontecer. E como ela acontece em Jugular Exposta. Sempre nuns recessos miúdos muito clandestinos e admiráveis, como no mais do que antologiável poema «11. Noutras tragédias», com esse esplêndido episódio do miúdo-cantor, que eleva esta escrita ao rapto do fôlego. Ou ainda no tão impecavelmente discreto e miúdo «27. Fumo o teu cachimbo», belíssimo poema a quem nos abandonou, pois «nem te consigo matar porque tiveste o mau/ gosto de estares morto quando cheguei a ti» (I, 27). Assim sucede: a contra-gosto da retórica de Jugular Exposta, as verdadeiras miudezas desta poesia não são literais. São poéticas.  

JBC

08 de junho 2025