. exposição . desenho .

Movimento Contínuo

de Filipe Romão

em

MU.SA – Museu das Artes de Sintra

até 17 de Abril

 

Um Poe a carvão,

ou reflexos no espelho de ébano

 

For indeed strange things will happen,

and secrets things be known, and many centuries shall pass away,

ere these memorials be seen of men.

And, when seen, there will some disbelieve, and some doubt,

And yet a few who will find much to ponder upon in the characters

here graven with stylus of iron.

Edgar Allan Poe in «Shadow — A Parable»

 

Uma das maiores dificuldades que a ‘arte contemporânea’, so to speak, veio trazer aos artistas actuais parece ter sido o da “inscrição”. Falamos daquele processo que, na voz de José Gil, adquiriu o estatuto de estação obrigatória na entrada por uma existência plena. Uma existência – num paradoxo um pouco batido –, sem medo de existir. Depois da vomição de todos os modernismos militantes, que chegaram a fazer gala de assimilar a “anti-arte”, e nos quais as vanguardas atingiram um tom tão veemente que se tornaram segregacionistas, a ‘arte contemporânea’ insinuou-se como esse território de ninguém, no qual só se sente confortável quem tem referências e não visões; quem se reclama da contra-cultura e nunca de qualquer tradição; quem reverencia a cultura de massas e, já muito demodé, pensa que o lugar da poesia é na rua, enfim, uma sem-abrigo. Todo este estado de coisas continua a ser alimentado por disciplina de um prestígio social perfumado, mas com a elevação intelectual da roda dentada de um aparelho relojoeiro: a história de arte. Ou não fosse a cronologia, o trunfo que ela sempre tem para exibir. Aliás, bastará observar o modo abnegado com que deglutiu o termo ‘contemporaneidade’ atribuído à arte, esse epíteto de acerto temporal e recorte cultural tão postiços que, feliz ou infelizmente, irá constar do epitáfio da disciplina. E que se aproxima.

Todo este quadro associado ao panorama da arte concebida por artistas portugueses torna-se ainda mais convoluto. Por razões várias. A mais sinistra talvez seja precisamente, aquela que é trazida pelo positivismo histórico, e que aponta para a noção de atraso ou recepção tardia. É por isso que observar a produção de um artista nacional – de agora, dos dias que correm –, e que não renega a pertença a uma linhagem maior daquilo que aquela 'história de arte' se precipitou a denunciar como datado, ou, pelo menos, a datá-lo, tout-court, é uma glória sem tamanho. O que no contexto da arte contemporânea portuguesa só quer dizer, não que ela tenha avançado (que enormidade!), mas que se libertou. E para fazer uso de uma chalaça do sistema da arte, se libertou de padrinhos para apertar o abraço dos grandes próceres e receber o sopro das grandes épocas.

É tudo isto que sucede com o trabalho de Filipe Romão (1981), patente na exposição Movimento Contínuo – Desenhos no MU.SA – Museu de Artes de Sintra (04 mar a 17 abr 2022, Galeria Municipal). Artista que se inscreve numa tradição – que, a título de um certo efeito de secretismo, nos inibimos de revelar –, e que vai de mãos tão dadas com o tempo de “já!”, que só a intemporalidade lhe fica bem, em detrimento da suspeitosa ‘actualidade’.

Romão começa por oferecer-nos qualquer coisa de muito arriscada e que o torna num artista corajoso, daqueles que fazem estremecer a nossa sensibilidade sediada no corpo, e levam a perguntar, como no poema [feixe de energia] de Herberto Hélder – que, de resto, dá título a uma das séries de obras de Romão ora expostas –, «se o corpo não será uma memória, forma colocada no imaginário pelo próprio ritmo» (Hélder, 2015: 131). Tal coisa é apenas isto: uma criança com carvão nas mãos e um papel à frente. Técnica única e puríssima. Não o folclore das técnicas mistas e formas ‘desconstruídas’ com que modernismos e pós-modernismos nos foram ludibriando a vista e endoutrinando o espírito. E torcendo o corpo. Não se retire daqui que estamos na presença de um artista que joga a cartada de uma ingenuidade ensaiada, com uma nostalgia barata na ponta dos dedos, e que seria só areia nos olhos de quem vê. Pelo contrário. Romão é cultor de uma técnica exigente. E pelo que fica à vista, de um filão temático que lhe dá o travo de artista, senão ‘maldito’ (um Edgar Allan Poe criador de uma certa Sintra), pelo menos, senhor de um universo enigmático, onde a infamante oposição entre figurativo e abstracto se aprecia com um bater-do-coração tal, que vemos «o mundo com rosto de poema» (Herberto dixit).

Naturalmente que não pode deixar de apontar-se a Filipe Romão a suspeita de ser um virtuoso das sombras. Mas de uma coisa podemos ficar seguros: aqui, não há chinesices (leia-se, sombras chinesas, que é um espectáculo de falsidades). As sombras de Romão têm uma espessura e uma envergadura muito autênticas. Porque muito vívidas. Por isso, talvez lhe vá melhor uma afinidade com o vitalismo de um E. A. Poe do ‘Monte da Lua’, do que com a dilaceração de um Heinrich von Kleist do Cabo da Roca.

Há duas peças neste Movimento Contínuo que seguramente irão inscrever Romão, não na história, mas na memória da arte em Portugal, esteio que foi tão mal tratado. O da manifestação de uma subjectividade feroz que a vida exige, e que sempre foi confudida com confessionalismo ‘romântico’. Falamos do desenho nº 10 da série «Feixes de Energia» (terceiro, à esquerda, após entrada no espaço da exposição). Nele se vê o critério exímio de um artista, perante o processo aleatório de concepção afim ao action-painting, que, neste caso, é tão-somente resultado da energia de um ideário pujante. De outra série, «do Jardim do Mundo», encontramos um desenho que apenas uma ekphrasis homérica poderia traduzir com a magnitude merecida.  Ficamo-nos por: um cardo monumental, erecto à nossa direita, e que, de tanto fixá-lo, nos devolve o olhar como o abismo nitzscheano. Há ainda a série «dos Lugares onde nunca Estive» (2019-2020), esta, in tenebris. De um artista saturniano. Estratosférico. Enorme. A regressar.    

JBC

12 de Abril 22

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