. teatro .

«O Duelo» de  Heinrich von Kleist

tradução e dramaturgia Maria Filomena Molder

direção cénica Carlos Pimenta

no Centro Cultural de Belém - Grande Auditório

 

2021: Kleistíada no Espaço

 

Em «…Le corps au travail» [2009], um dos documentários sobre a vida que levou e o trabalho que urdiu, no seu posto maior de encenador e realizador da grande linhagem europeia de um Marcel Carnet ou de um Luchino Visconti, Patrice Chéreau conta, com galhardia, um episódio daqueles com sabor a apócrifo, e que pode, sem discussão, dizer-se que contém todo um programa. Quando foi convidado para encenar o ciclo de O Anel de Wagner em Bayreuth, depois da recusa de Ingmar Bergman em fazê-lo, com o argumento, na altura, de continuar convencido de que Wagner ainda não tinha sido 'desnazificado', Chéreau propôs uma versão cénica toda voltada para os 'tempos da actualidade´, e que fez escola, mas também lhe trouxe belos dissabores e críticas ferozes vindas da ortodoxia wagneriana. A mais escabelada talvez tenha sido a de transformar as filhas do Reno, figuras intocáveis da pureza folclórica da mitologia germânica, em prostitutas divertindo-se à beira de barragens hidroeléctricas infectas. O coração da história que Chéreau conta é o momento em que, nos ensaios, um dos cantores do elenco lhe diz, ‘a sua encenação é esplêndida, mas tudo isto, com outros figurinos, figurinos de época, daria outro efeito’. Chéreau diz, de seguida, ter retirado desta petite-histoire, a lição de que em cena qualquer coisa é aparato. E aparato é aparato é aparato é aparato. E nas artes de cena, o maior risco é acumulá-lo. A grande arte é saber colocá-lo na nota certa. Num figurino, por exemplo.

Para não nos desviarmos do anedotário de Chéreau, poderíamos dizer que na versão cénica da novela O Duelo de Heinrich von Kleist que Carlos Pimenta propõe com assinalável seriedade (isto porque os riscos eram temíveis: um só intérprete, uma única voz, um só chão — a palma para Miguel Loureiro, senhor de excelentíssima afinação em aparelhos vários, ainda que perdido no domínio dos registos: de menos, para actor, de mais, para narrador), tudo teria sido de distinto efeito, se quem nos fala envergasse outro 'figurino’. Isto, nem que fosse para neutralizar a acumulação de aparatos que se vão estatelando ao fundo do plano inclinado em que o "director cénico" se colocou. E que é o plano de um gosto altiloquente para fazer frente à má-consciência de ter nas mãos um texto proto-dramático cheio de escolhos meta-discursivos (o que é que significa dizer, em cena aberta, que se vai colocar as coisas «…à maneira teatral»? — a partir daqui, só se esperaria uma brechtianada que fosse directamente às veias dos espectadores; porquê o apontamento pseudo-narrativo daquela notícia histórica em que se dá a saber que o Senhor von Kleist se suicidou em tantos de tal, e o Senhor Caspar David Friedrich morreu ´praticamente louco’ em tantos de tantos? — tudo num tom 'wikipediano' que é uma presunção de ignorância do espectador sentado, e quase um insulto ao espectador que anda pelo seu próprio pé; mas isto faria parte de um conjunto de reflexões sobre o trabalho textual de Maria Filomena Molder, sob o título «As Selecções do Reader’s Kleist»).

Então, quais os pecadilhos aparatosos de Pimenta, que estaria ao alcance de um só único figurino neutralizar, com seu efeito intrépido, cromático que fosse? Pois que temos uma entrada em cena à italiana, com o actor surgindo de atmosfera brumosa ao som de Carl Maria von Weber, denunciando, logo no introitus, um romantismo de pacotilha. Pois que temos a pompa desse monólito ultra-minimalista, elefante-branco caído no centro geométrico do palco, que um Odisseus do Espaço não desdenharia enfrentar, e que acaba por ser pau para toda a colher semiótica: cabana, mansão, castro, janelão, écran, devorando a cena e tornando o actor num duende, o que para ambiente romântico, quase gótico, não está mal. Já para uma noite passada na companhia de um Camareiro, talvez não seja o mais acolhedor.

Pois que a seguir à citação para-dramática de uma carta de Kleist, momento comovente e altíssimo desta recriação de O Duelo, carta em que o autor revela o traço que mais o movia na obra de arte — os vestígios que nela qualquer autor deixa sobre si mesmo —, o director cénico faz acender, em retro-palco, as luzes dos camarotes na sala do auditório, talvez como que iluminando as estrelas e o cosmos [ad astra], sem se ter apercebido que o efeito que a arquitectura do Grande Auditório do CCB desencadeia é o mesmo de um lobby num qualquer 'Hotel Confidence' em Estocolmo ou Kuala Lumpur.

E, pois, ainda que para terminar, é-nos oferecida uma sequência de toque effrayant, totalmente para épater les bourgeois, em que uma exausta peça pianística de Schumann é vulgarizada, com o actor a desenhar gesticulações de metrónomo patéticas, de semblante carregado como quem acabou por não entender nada. Sorte que logo acaba por sair por onde entrou. Só que Kleist ficou pelo espaço, a pairar. E no fim, não se fez justiça. Não é Kubrick quem quer.    

JBC

novembro 2021 

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