. cultura visual .

Exposição de Letreiros Luminosos

 Letreiro Galeria,

Prata Riverside Village

até 4 de Março

 

A caverna dos néons

 

Um dos mitos mais vivos da modernidade estética continua a ser o da iluminação ubíqua. No campo das ideias, podemos ainda saborear a linhagem de noções nascituras desse sapere aude kantiano, que, na realidade, como veio a defender Jürgen Habermas, ficou-se por um parto incompleto: a modernidade é um projecto inacabado. Por isso, das Lumières ao Enlightenment, da Aufklärung ao Klerismo, da Ilustración ao Illuminismo, podemos estar seguros de que, para lá do primado, um pouco prestímano, do conhecimento científico, o qual, no dizer de Maurice Merleau-Ponty, «manipula as coisas [mas] renuncia a habitá-las», a única coisa bem feita que resta é a iluminação pública. Alguma dela ainda em andamento.

De resto, o trabalho mais vincado da modernidade estética, ainda nas palavras de Habermas, foi o de constituir-se como uma vanguarda a invadir território desconhecido. A “noite” foi esse território dilecto. E mormente, a noite na cidade, onde, como se lê num conto programático de E. A. Poe, «men die nightly in their beds, wringing the hands of ghostly confessors, and looking them piteously in the eyes – die with despair of heart and convulsion of throat, on account of the hideousness of mysteries which will not suffer themselves to be revealed.» Os mistérios e os terrores nocturnos foram o último pasto que a cultura romântica, pós-romântica, ultra-romântica, gótica, et alia, conseguiram resgatar à rapina iluminista. Mas foi coisa de pouca dura. O desenvolvimento da técnica rapidamente se encarregou de cobrir com uma cúpula luminosa, sobretudo através do abastecimento eléctrico de massas, a urbis e a orbis. Tudo acabou por resultar, seguindo a tese de Paul Virilio, numa estética picnoléptica (a do acender-e-apagar no tempo de segundos), em que o mais importante é o efeito de interrupção, de cintilação e de l’affichage (o anúncio). Mais do que a informação. E daí, tudo degenerou, após o apogeu do Liberty Style, nessa peregrinação de um kitsch fulgurante que é o tour pela city by night (a qual tem nas luzes natalícias episódios gloriosos). Até o maior psicagogo do modernismo, Monsieur Le Corbusier, não se inibiu de ventilar, a este respeito, uma trivialidade confrangedora, como se tivesse ditado um credo luminoso: falamos do citadíssimo, e por isso já muito truncado, a arquitetura é o jogo sábio das massas e volumes debaixo da luz.

A cidade moderna entrou num torneio feroz para iluminar-se com furor, o que foi também um concurso pela identidade própria e pela manifestação de avanço civilizacional, cuja expressão canónica é a do cosmopolitismo. À semelhança de querer ter o maior Jardim Zoológico do mundo, querer ter o maior farolim, andou-lhe a par. E não importa que Córdoba já tivesse, em mil e quinhentos, candeeiros de rua que alimentaram poesia excelsa, enquanto Londres teve de esperar por 1666 para ter o seu grande momento de ‘iluminação pública’, pelas razões mais sinistras. Mas que ombreou com a Roma de Nero.

Tudo isto se embrulhou num tal equívoco entre contentor e conteúdo que até a Capital do Séc. XIX, como lhe chamou Walter Benjamin, se viu sem saber muito bem por que é que lhe caiu em cima o epíteto de ‘Cidade-Luz’. Se por causa dos bateaux mouches, ou se por ser a cidade de Voltaire. Ou ainda, se por ser a sede do laissez-faire, e ter aceitado que as entradas do Métro tivessem pendurados olhos chamejantes de Medusas a regurgitarem luz vermelha. Apesar de tudo, 'ir ver as luzes' conquistou um lugar na mitologia urbana, que persistiu bem para lá das grandes salas de cinema, e até das pequenas saletas com televisor e naperon. Por três razões tão prosaicas que podem acabar por tornar-se inesperadas: as luzes eram caleidoscópicas, eram gratuitas e eram sempre as mesmas. Em suma, a combinação exigível ao desenvolvimento de um sentido de comunhão: beleza, urbanidade, pertença.  

Vêm estas considerações por conta da exposição de letreiros luminosos na Letreiro Galeria, localizada na Prata Riverside Village, em Lisboa. A respeito do que ali se vai ver, importa ser breve, por um motivo indiscutível: toda a descrição detalhada será uma traição, não a um efeito surpresa, não à graça dos objectos expostos, não à mensagem que ali possa encontrar-se, mas tão-somente porque compromete a replicação, a repetição, a reencenação desse momento mítico, já o dissemos, da vida na cidade, e que é “ir ver as luzes”. Mas poderemos ser ainda mais desafiantes, ao afirmar que o único comentário que poderia honrar esta exposição deveria ter a forma de um ensaio visual. E tanto se lamenta que ela não tenha à porta uma legião de peregrinos.

Trata-se de uma exposição que é um prodígio de preservação de duas expressões que nem sempre são fáceis de compaginar, memória cultura material. É que nela ocorre um pequeno milagre que é indesculpável não ser testemunhado. Uma reunião geracional. Os que, durante anos, viram estes letreiros a coroar a paisagem nocturna da cidade, encontram-nos, agora, num tête-à-tête que é um arremedo de um namoro de juventude. Os que estão abaixo da idade para os terem visto a pairar pelos telhados, aproximam-se deles, nesta garagem onde estão expostos – uma autêntica caverna de néons –, como sinais que uma Ariadne terá deixado nos subterrâneos labirínticos de uma cidade cada vez mais hostil. Nostalgia e peripécia dão-se as mãos.

JBC

11 fevereiro 2022 

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