. livro . arquitectura .

Lisboa, Arquitetura contemporânea e cidade antiga

de Flávio Lopes

Caleidoscópio, 2020

 

A menor pela maior

 

Chega-nos com data de 2020, mas porque trata de matérias antiquíssimas, que solicitam uma longue durée (e. g. cidades históricas, património cultural, restauro arquitectónico), nada perde em ser lido agora. Chega-nos sob a forma de álbum cartonado e profusamente ilustrado, gráfica e fotograficamente – de resto, à medida da visualidade, e visibilidade, ferozes que a arquitectura exige às publicações que lidam com ela. Porém, encerra conteúdo escrito raro no panorama do género, com um recorte da mais exigente scholarship, o que o torna num objecto a contrapelo, por um lado, com a oculocracia vigente na disciplina, por outro, com uma loquocidade militante em torno dos fenómenos da contemporaneidade, e a fortiori da arquitectura, os quais à conta de serem mal compreendidos, põem toda a gente a falar sobre eles. Mas o ‘contemporâneo’ aqui, e esta obra demonstra-o, é já vetusto. Lisboa, Arquitetura contemporânea e cidade antiga é a mais recente opus de Flávio Lopes, estudioso do património arquitectónico (e que esforço para não usar os epítetos “especialista”, nem “académico”), com obra extensa, e de referência, sobre o tema. Tema, aliás, que a prática profissional corrente, arredou para debaixo de um tapete largo, de nome reabilitação, autêntico albergue espanhol de uma má consciência herdada do movimento moderno a respeito de tudo o que levasse a marca da tradição, qualquer que ela fosse. E onde foram parar práticas tão distintas como o restauro e a conservação, além de muitas outras nem sempre claras (revificação?).

O que Flávio Lopes traz à evidência de forma bastante estruturada, e daí elegante, é que o assunto tem uma densidade respeitável. E uma doutrina pujante. Basta percorrer as páginas exaustivas da secção «A Consolidação dos Conceitos» [25-44] e ver que talvez nunca tenham sido escritas tantas Cartas internacionais (e outros institutos afins) sobre qualquer questão, seguramente, quem sabe, desde São Paulo (em cinquenta anos [de 1962 a 2011], entre cartas, resoluções e recomendações, foram emitidos quinze documentos). Ainda assim, não é matéria abençoada. Na realidade, pode verificar-se que a primeira grande crise que assolou a arquitectura na Modernidade, empacipada em disciplina científica, foi precisamente a consciência de que o material histórico era diferenciado, e por isso, cosia-se mal com a produção moderna (técnica e industrial). Este dissenso, em parte alimentado pelo positivismo histórico que recortou os tempos em épocas – o que nas artes instaurou o primado da estilística –, foi de tal forma traumático, mormente no espaço urbano, que apesar da bondade social por trás dos processos de recuperação, e do respectivo prestígio institucional, a fama em arquitectura não frequenta este círculo. Passeemo-nos pelo portfolio de um arquitecto Michelin, e é ver como as intervenções relacionadas com o património ocupam o lugar de ‘quem fez favor’. A título de exemplo, atente-se no código genético de um prémio como o Pritzker. O último dos premiados que talvez seja eminentemente reconhecido pelas intervenções no património histórico foi Rafael Moneo. Estávamos em 1996, seis anos depois de Aldo Rossi tê-lo merecido, e ainda a digerir as belas obras de recuperação a cargo de Gae Aulenti, que nunca foi premiada.

Esta obra de Flávio Lopes é indiscutivelmente um contributo precioso no sentido de resgatar este género de intervenção de uma espécie de inferioridade, dir-se-á intelectual e estética, que advém, no quadro do discurso cultural, do facto de o arquitecto se ver sujeito a uma sorte de autor em segunda mão. Neste sentido, Lisboa, Arquitetura contemporânea… é um trabalho sério e que não esconde um programa pedagógico: demonstrar que, apesar de uma teia regulamentar pesada, de propósitos científicos intransigíveis e de princípios éticos nem sempre estimados pelo sector da construção, é possível à arquitectura fazer maior aquilo que aparentemente tem um carácter menor (dicotomia que, com desassombro teórico, Flávio Lopes vai colher a Gustavo Giovannoni, e a que regressaremos). Ao ter-se debruçado sobre a cidade de Lisboa, o autor deste volume trata com um conhecimento fino, em virtude de profundo trabalho no terreno, uma realidade armadilhada por contradições várias (de que a habitação favorecida às cavalitas de tipologias populares é uma delas), e aprisionada por episódios pouco edificantes no que ao património arquitectónico e urbano diz respeito. Lembrem-se os casos Casa dos Bicos e Martim Moniz, a que também não deve subtrair-se a reconstrução do Chiado por Álvaro Siza. No capítulo «Pensamento e ação: Projetos em confronto» [103], Flávio Lopes compõe um políptico de intervenções exemplares, que longe de poderem, juntas, constituir um cânone, alcançarão, de certeza, o estatuto de retrato de um tempo. Por serem desiguais nos resultados alcançados, o que não é de estranhar, há uma voz silenciosa que, tendo ou não sido calculada pelo autor, faz ecoar uma vibração crítica muito subtil e delicada. Resulta ela da excelentíssima opção metodológica, o comparatismo, a que Flávio Lopes deita mão. Uma mão cheia. Metodologia muito pouco acarinhada no seio da arquitectura, onde vigora um acantonamento autoral provinciano que a dificulta. Isto pode resumir-se na glosa: cada arquitecto no seu livro. Se essa voz de fundo se tornasse mais veemente, talvez pudéssemos saber o que pensa Flávio Lopes da «cobertura amansardada (…) revestida a zinco» [163] que actualmente grassa por Lisboa e ameaça transformá-la, fisionomicamente, numa cidade setentrional, para não dizer hanseática. Ou simplesmente escura. Ou do desconchavo analógico (quase uma caricatura) que é a «Casa na Rua das Mercês» por João Luís Carrilho da Graça [202-204]. Ou ainda do atentado à identidade morfológica (conceito maior neste campo de estudos) que constitui a «Casa na Rua do Quelhas» por Inês Lobo e Paulo Mendes da Rocha [154-157]. Nada disto teria cabimento nesta obra, a que o cunho de equidistância e imparcialidade granjeia elevação científica.

Na verdade, a glória maior de Lisboa, Arquitetura contemporânea… encontra-se logo a abrir, no capítulo «Cidade Antiga: Conceitos em debate», cujo título revela, com extremo acerto, o lastro problematizante que carrega. Toda a terminologia apresentada configura uma constelação lexical de utilidade estimável para quem venha a perder-se no ‘meio especioso’ que é o património. Exemplo de vulto é o conceito de salvaguarda. Para dar a medida da precedência que ele admite, note-se que a palavra ‘protecção’ tem uma ocorrência modesta ao longo do texto. É neste capítulo que pode ler-se, com interesse indómito, um mapeamento de grande fôlego em torno das ideias e dos pensadores do património arquitectónico e urbano que mais enriqueceram a matéria.

Trata-se de um punhado de trunfos que, de logo, fazem da leitura deste livro uma partida ganha. Flávio Lopes convoca aqueles que exerceram um papel mais visível na corrente e contra-corrente, e por isso é possível que não tragam novidade (Kevin Lynch, Robert Venturi); mas ainda aqueles cujo impacto, tendo ocorrido de forma menos saliente, foi muito mais decisivo. É o caso de Gustavo Giovannoni e da obra Vecchie città ed edilizia nuova, que, seguramente por razões editoriais, surge também identificada numa tradução literal («Cidade Antiga e construção nova» [13]) que não deixa de suscitar reservas. O legado de Giovannoni é fertilíssimo, mais que não seja por ter sido um dos pioneiros na introdução do termo «ambiente» em contexto urbano.  A fortuna que Giovannoni traz ao argumentário de Flávio Lopes é a da dualidade entre «edifícios maiores» e «edifícios menores» [15], reportados, naturalmente, ao respectivo valor estético, artístico, arquitectónico e histórico. Não se duvide da conveniência didáctica desta formulação. No entanto, ela faz um aproveitamento arriscado das palavras de Giovannoni, cujo ideário Flávio Lopes parece ter recibido da tradução francesa, e em particular da introdução àquela obra que Françoise Choay redigiu. De resto, Flávio Lopes oferece uma tradução temerária (senão martelada) daquela introdução, onde toma a parte (obra) pelo todo (arquitetura). O que Choay nos diz dos achados de Giovannoni é: «les bâtiments (…), divisibles un deux categories: les oeuvres prestigieuses de l’architecture savante, qualifiée par lui de majeure, et les oeuvres modestes par leur échelle et par leur destination, d’une architecture de la quotidienneté, voire populaire ou même vernaculaire, qu’il qualifie de mineure». Portanto, o que é ‘maior’ ou ‘menor’ é a arquitectura, nunca os edifícios. Aqui, sim, há algo de peremptório e de severo. Aliás, Giovannoni tem até mais para dar, o que o autor de Lisboa, Arquitetura contemporânea… não nos devolve. A noção fecunda de uma solidariedade entre maiores e menores. Regressando a Choay: «…chacun étant totalement solidaire de l’autre, l’un n’ayant de sens historique et de valeure esthétique que par l’autre. (…) [Le] context acquiert ici sa pleine signification: l’altération de son context peut détruire un monument plus sûrement qu’une atteinte à sa propre structure physique».

JBC, 25 de Maio 22

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