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«A Montanha Mágica» 

de Thomas Mann

 tradução de António Sousa Ribeiro

[Relógio d'Água, 2020]

A Montanha Sousa Ribeiro

 

Dentro daquilo que é a lógica soi-disant cultural em torno do livro e da escrita, quem hoje se passear pelos espaços livreiros do mercado português [R.I.P. livrarias], pensará que alguma efeméride de monta se assinala em torno do nome de Thomas Mann. As traduções mais recentes das obras de Mann acotovelam-se em prateleiras e escaparates, o que, literalmente, até não deixa de entender-se, porque as obras do filho dilecto de Lubeque respondem pela acusação de serem volumosas, que é a forma desinfectada de dizer delas que são bacamartes. Ou no registo conteudístico que são prolixas. Mas, na realidade, não há à volta de Mann celebração alguma no horizonte, como as que, quase sempre, arrastam “os grandes escritores” para o opróbrio da edição dos rascunhos mais renegados. Que foi o que sucedeu – já poucos se lembram –, pelo centenário de um E. M. Forster, comemoração que se estendeu por uma década.

Isto para falar do selecto reino dos mortos. Porque quanto ao panteão dos vivos, um prémio redundante é suficiente.    

Poder-se-á então supor que se vive uma “renascença” manniana [agora, usa-se mais o empolgante “revisitação”], como se houvesse em Mann coisas novas a descobrir ou a publicar. O que está fora de questão. Porque há. Julgar-se-á, por alternativa, que se trata antes de uma “reabilitação”, o que é ainda mais abscôndito, pois se há nome que nunca abandonou tanto as montras, quanto os fundos, Thomas Mann é esse nome por excelência. E com a agravante de ter sido dono de uma produção que encheu a medida dos leitores mais ou menos apetrechados, os quais, como “grandes leitores”, assim se quiseram cultivar à sombra dos “grandes escritores”. Mas isto foi numa época em que a criação literária de Thomas Mann e o universo que a impregna eram um consolo para as mentes perturbadas por um mundo incerto. Ou, como no dizer desse outro escritor, Robert Musil – e que, por suposição, terá concorrido em género afim ao de Mann, o da ficção intelectualmente sofisticada –, a personagem do “grande escritor”, assim ele o propôs, é apenas um homem do tempo das “grandes guerras”. Grande escritor e Thomas Mann são dois termos indestrinçáveis. Eis, pois, porque quando a maré Mann sobe, os canhões deverão estar por perto.

O que pode ainda tornar-se de espavento é que se há escritor que sempre resistiu bem aos mais medonhos atentados perpetrados por traduções duvidosas: estamos a falar dele – chapeau!  Isto pode sustentar-se nas conjecturas mais díspares, que alimentem o comparatismo e outros estudos fecundos. Mas há uma delas que é quase caricata e inegável: bastou-lhe combinar um verso da Odisseia com a poltrona acolchoada num Hotel de luxo no Lido, e o palco ficou montado. E, a seguir, a plateia rendida. Um leitmotiv tristânico escutado em plena enfermaria conseguiu o que a medicina estava a meio-século de alcançar. Thomas Mann foi um mago da combinatória entre miséria humana e prestígio social. Isto é o que ainda o faz imenso. E por isso, uma iguaria fina. Mas o osso menos tragável sobre “a vida”, diríamos, com menos extravaganza e menos pompa, deixou-o ele em obras mais económicas, como esse Tonio Kröger (1903), que trazia Franz Kafka em devoção, e hoje ninguém faz alarde de ter lido.

Regressamos às prateleiras portuguesas para admirar o fervor com que com uma brevíssima década entre elas, surgiram duas traduções da magnum opus de Mann: A Montanha Mágica [Der Zauberberg (1924)]. Uma, por Gilda Lopes da Encarnação em 2009, na Dom Quixote. Outra, por António Sousa Ribeiro em 2020, na Relógio d’Água. E para dar o alcance que o facto merece, será suficiente recordar que foi obra que circulou durante cinquenta anos, no contexto da língua portuguesa, numa tradução de Herbert Caro, para a versão do português do Brasil, e, entre nós, retorcida e editada pela Livros do Brasil. Tradução sempre vilipendiada pela intelligentsia literata. Mas da qual, e talvez seja por isso, o desejo superando sempre as vicissitudes impostas pela censura bem-pensante, gerações inteiras desfrutaram, com uma subida ao Berghof alpino pelas mãos de quem chegou a traduzir o Oswald Spengler de Decadência do Ocidente [Der Untergang des Abendlandes (1918)], tradução que ainda está por fazer em Portugal. Tivemos pois, assim, pós-adolescentes e menos adolescentes que fizeram a sua formação [Bildung] à la Hans Castorp, pelas mãos de uma versão que a passagem das épocas se encarregou de tornar lendária. Quem poderá esquecer, a fechar o subcapítulo «Dança Macabra», a saudosa máxima desesperada: «mês começado […], mês liquidado, assim como uma moeda trocada já se conta como gasta» [Livros do Brasil, p. 332]? Elegante. E comparece-se igual passagem no tom um pouco canalha de Lopes da Encarnação: «mês iniciado era um mês ultrapassado – chapa ganha, chapa gasta.» [Dom Quixote, p. 361]. Lopes de Encarnação que, apesar de ter atingido o máximo refinamento numa tradução exemplar de Os Buddenbrook [Buddenbrooks (1900)], também na Dom Quixote em 2011, teve uma incursão desavisada pelo território gelado de Paul Celan [Não sabemos mesmo o que importa: cem poemas, Relógio d’Água: 2014], e que arregimentou o repúdio da “crítica da especialidade”.

Por entre o trabalho incansável de Teresa Seruya, com a tradução magnética do romance Lotte em Weimar [Lotte in Weimar (1939)], de 2014 na Vega, fomos convocados para nova subida à montanha, desta feita, pela rédea de António Sousa Ribeiro, em 2020, na Relógio d’Água. E se, num adágio – reconheça-se, zombeteiro –, a versão de Lopes de Encarnação poderá ser cunhada como a tradução de «há uns tempos atrás», formação redundante, e desgraciosa, que é recorrente ao longo de todo o texto, a tradução de Sousa Ribeiro leva-nos por barrancos inesperados. Pouco admissíveis e desconfortáveis.

De resto, há a dizer, para colocar esta 'euforia tradutória' em perspectiva, que Mann, apesar de um escritor prolífico e disciplinado, no que dizia respeito ao trabalho de ficção era duplamente bissexto. E, mais sério, atormentado. Para dar a exacta medida, A Montanha Mágica devorou-lhe quase vinte anos de vida, E, para carregar mais na desmedida, tudo começou como projecto para um simples conto, género, aliás, em que nem chegou a cumprir bem um tirocínio completo, porque se lançou jovem, e cegamente, às oito centenas de páginas de Os Buddenbrooks, que lhe trouxe gloria subitta, tudo em menos de ano e meio. Isto para frisar que, nem como paralelismo que seja, traduzir Der Zauberberg exige qualquer coisa como, para evitar superlativismos, uma porção de vida. Não está em causa que assim não o tenha sido com António Sousa Ribeiro. Mas os vestígios de uma urgência actualizadora são salientes.

Não cabe aqui acolhermo-nos em institutos doutrinários sobre teoria da tradução, ou em bulas de uma posologia de como usar a respectiva oficina. Ou ainda colocarmo-nos sobre o fio muito lasso do trapézio entre o respeito pela língua de partida e o domínio, estilístico, da língua de chegada. Ergue-se em torno do “grande escritor” um valor maior, o primado do idioma que é o dele. Isto transforma, por vezes, o tradutor num agente cientificamente suspeito, o de tornar-se num admirador devoto, vulgo, cultor, da obra, da vida, da persona e dos valores da figura cujas palavras tem de verter. Tudo compondo um guazzabuglio [Settembrini dixit] infra-científico, e sobre o qual o anátema maior de ser um “apaixonado” é uma afronta rematada ao valor-chave da atitude cientificizante: o distanciamento. É nesta brecha que se abrem as fragas em que se abrigam os curiosos na matéria. Acontece que, mesmo os avisados, não estão livres dela. Adoram, falham. De resto, é-lhes ainda frequente uma postura parente do zelo pela propriedade privada, e que é apenas um arremedo de autoridade. É não pouco comum ouvir dizer a tradutores dedicados a um autor que ele é “o meu… fulano de tal”. Paternalismo e provincianismo deram-se sempre bem.

Contudo, o abalo na "Montanha Sousa Ribeiro" não se inscreve em nada disto, o que, de facto, ficando assim tipificado como fica, merecerá toda a indulgência.

Aquilo que há a apontar à tradução de A Montanha Mágica de Thomas Mann por António Sousa Ribeiro é uma tentativa de refrescar o idioma de Mann, que resulta apenas numa coreografia de correcção lexical, a qual, pela sua própria natureza, não se distingue de todas as outras correcções de má-consciência (políticas, artísticas, científicas, culturais, etc.). Dança que tem tido em João Barrento, na germanística, um celebrante-mor à volta do corpus de Walter Benjamin, o qual já nos subtraiu a preciosa “reprodutibilidade técnica”, que todas as línguas neolatinas adoptaram, inclusive as de arredor, substituindo-a pela affreuse formulação perifrástica “possibilidade de reprodução técnica”.

Thomas Mann fica enviesado por semelhante desiderato, que mal se recorta de uma agenda vulgarizadora à conta de valores de mercado. Enfim, o leitor é que sabe e o leitor é que compra. E é aqui que não há volta a dar, senão apontar o dedo. Mas sem fazer disto um gesto cansativo. Apenas peremptório.    

A Montanha Mágica tem no corpus de Mann o papel de um grande aparelho narrativo, carregado da mais pesada maquinaria narratológica e das mais complexas engrenagens literárias, seja ao nível das referências culturais, seja no patamar do que os estudos pós-modernos designam por intertextualidade e intra-textualidade. É esta a razão pela qual o romance de chumbo de Mann ainda hoje granjeia os mais desencontrados estados de ânimo: da hipnose delirante ao repúdio ideológico. Continua a ser uma central de energia difícil de desmantelar, ao passo que o refinado trabalho de relojoaria que é Os Buddenbrooks alimenta a percepção reconfortante de livro de época. A dobrar. Da época que conta e da época a partir da qual ele conta.      

É assim que se compreende mal os vales de acesso ao recinto de Davos-Platz a que Sousa Ribeiro deita mãos. Entramos com ele, mas há um sabor a observadores num camarote do desconchavo que, ainda seja calhado ao ‘romance da montanha’, fere-o de uma feição cínica que é avessa a Mann, um sentimentalista debulhado, que fez mais do que toda a literatura do século XX para denunciar, muito avant-la-lettre, o escândalo do fim da humanidade, elaborado, com fortuna, por outro psicagogo, Michel Foucault.

O idioma de um autor vale o que vale, e fazer dele dogma é também uma barreira sinistra à viagem que possa ser-lhe dada percorrer noutras línguas. Mas no caso de Mann, esse idioma tem toques de credo. Integra termos sagrados. Qualquer novidade, compromete-os. Em A Montanha Mágica a expressão que se alcandora a esse estatuto é a de „Sorgenkind des Lebens“, a que Sousa Ribeiro, vá-se lá entender porquê, resolve dar ressonâncias estruturalistas, talvez mesmo althusserianas, oferecendo-nos como tradução um: «filho problemático da vida» [p. 365]. Sorgenkind ocorre cerca de meia centena de vezes em A Montanha Mágica, para não achar-se que semelhante forma, com laivos de diagnóstico psicotécnico, arruina a poesia, ou a prosa e a verve de Mann. E poderíamos regressar às traduções já aqui invocadas para fazer ver a Sousa Ribeiro a ousadia da opção [«filho traquinas» (p. 394) em Lopes da Encarnação; «filho mimado» (p. 368) em Herbert Caro; ou «’life’s delicate child’» (p. 348) em H. T. Lowe-Porter para a Vintage Books]. Leva-nos isto a supor que  “A Montanha Sousa Ribeiro” não será um lugar para infantilidades, tal a gravitas colocada no termo “problemático”, o que só pode querer dizer que os avanços do discurso problematizante de uma estatística, de uma probabilística, de uma combinatória e de todo o argumentário das tecnologias da previsibilidade, estarão aqui ao serviço da antecipação do evento de estrondo que acaba com o idílio do protagonista, e com o curso quasi-perpétuo da narrativa: a Primeira Grande Guerra. Isto não deixa de constituir uma dupla traição. À lógica do romance, mas também ao tom paródico a que Mann era muito dado. Ou irónico, enquanto modo de denúncia de um mundo em desconcerto. Aliás, de acordo com a fórmula de György Lukács, o mais eminente defensor da obra de Mann em contraste com as obras de um Kafka ou de um Musil, fórmula segundo a qual é mais valioso o retrato realista de uma realidade distorcida, do que o retrato distorcido de uma realidade subjectiva. A menos que o termo “problemático” tenha sido, entretanto, adoptado pelas mentes muito vocais da chacota social. E há a não esquecer que Sorgenkind é o remoque atirado ao protagonista do romance na voz, talvez, do maior buffone político de toda a literatura do século XX, il Signore Luigi Settembrini, ele também um exemplo dos valores que viriam a afrontar os tempos por vir: consciência moral e resistência física. Settembrini, diremos nós, jamais seria capaz, mesmo no linguajar deste exacto instante, de fazer-se escutar por Hans Castorp com termo tão inumano quanto o adjectivo “problemático”. Todavia, estamos apostados em conceder a Sousa Ribeiro o intuito, seguramente, não tanto de inovar, mas antes de demarcar-se da tradição. Ou, desta feita, deslize maior, o de marcar a paisagem da obra com o cunho de uma época. A de agora. Haverá 'crianças de risco' pelas montanhas, isso é pacífico. Já problemáticas, será talvez “todo um vasto complexo” [«das ist ein zu weites Feld» como diria o pai de Effi, no Effi Briest (1895) de Theodore Fontane, que Mann glosa em Der Zauberberg]. E o escrúpulo que aqui nos prende em torno do termo “problemática”, é que ele tem ocorrência na tradução em circunstâncias completamente a contrapelo com a angústia exclusiva que Sorgenkind exige. É assim, por exemplo, sobre «a história de um ‘lugar de conveniência’», que essa sim é «decididamente problemática» (p. 452) [«‚Orte der Beiwohnung‘ war entschieden bedenklich»]. E no abuso do termo para verter o subcapítulo «Fragwürdigstes» enquanto «Coisas muitíssimo problemáticas» (p. 761). Pas besoin.

Os aspectos que poderão nutrir reservas ante a tradução de Sousa Ribeiro não se restringem ao caso ‘Sorgenkind’, que pôr-nos-íamos todos de acordo, apesar da respectiva centralidade, tratar-se de um epifenómeno numa obra de novecentas páginas. Seria imprudente. Contudo, há mais. E o dedo que aqui se aponta, não muito se mantém firme. Fica-se por duas outras estações. — No excelso e mítico subcapítulo «Neve», Sousa Ribeiro não demonstra qualquer destreza na intra-textualidade de Mann. É que toda a descrição ali composta de uma “Arcádia”, e que é dos momentos mais desconcertantes da literatura moderna, tem de ser lida e traduzida à luz de um momento inaugural da obra de Thomas Mann. A ecfrásis das tapeçarias no salão da Mansão dos Buddenbrooks na Mengstraße, e que, naquela outra passagem, alimentam a alucinação de Hans Castorp. Castorp é um Buddenbrook transplantado dos aluviões hanseáticos do Trave, para os pináculos de Davos. Haverá, aqui, sempre que cotejar, praticamente palavra a palavra, as duas descrições. Sousa Ribeiro parece não ter-se dado conta. — Mas outro passo mais inopinado, sobretudo para quem actualmente se dedica aos Kulturwisenschaften, foi o de ter transposto o termo blasierter – que teve à época de Mann, um pensador que lhe deu o recorte que adquiriu até hoje, o de blasé, pelo punho de Georg Simmel –, através da solução «snob» (p. 728). O que raia a ofensa. A um estudioso de cultura não se espera vê-lo perdido por entre as noções de blasé, snob, dandy, flâneur, diletante, et alia. Hans Castorp, sine nobilitas?

Última nota para o trabalho indigente da edição. As gralhas e faltas ao dever da revisão atropelam-se de tal jeito, que não há cousin que não se transforme em «cousain» (p. 396). A Montanha não perdoa o mais pequeno deslize. Desencadeiam-se avalanches.

Segundo declarações do próprio em tempos, haverá uma tradução de Der Zauberberg numa das gavetas do olímpico Frederico Lourenço, por ele mesmo. Sugerimos, desta vez, duas décadas.  

JBC

dezembro 2021 

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