. Livro . ensaio .

Normalidade

de Carlos Leone

Lisboa: Theya (2020)

 

A normalidade more geometrico

inferências da frente pandémica

 

Fear presides over these memories, a perpetual fear.

Of course no childhood is without its terrors...

Philip Roth, The Plot Against America (2004)

 

Uma das lacunas de que o nosso panorama, soi-disant, intelectual se ressente é a de um pensamento político-social universalista. O que não é o mesmo do que produção de análise sócio-política, nem de trabalho de sociologia política, ou sequer de doutrina em ciência política, e muito menos, ainda, de divulgação de tendência, ou, abaixo disto, de opinião política. Mas postas de lado estas minúcias disciplinares, que não são de somenos, o quadro agrava-se quando juntamos a essa falha a componente geracional, por mais vagabunda que a reputemos. E de facto, à geração nascida nos anos 70 do século XX [esta, uma verdadeira “Geração de 70”, mais que não seja porque nascida em gemiparidade com a democracia no país], geração sem Cenáculo, e que se prepara agora, entrada a terceira década do milénio, para abandonar a idade de quarenta anos, nunca lhe foi dada a glória de falar e pensar, isto sob o patrocínio das disciplinas próprias, sobre qualquer outra coisa que não fosse a realidade do país. Descontemos, talvez, as práticas artísticas. Este universalismo deficitário, perpetua-se a cada dia, no nosso espaço público, onde os comentadores de política nacional se renovam ao ritmo das versões mais recentes de software, ao passo que os analistas dos cenários sociais além-fronteiras, da cena política mundial, das relações internacionais, e da Weltliteratur, continuam a ser recrutados num mandarinato que lê o globo em regime actualizado de “os desenvolvidos e os subdesenvolvidos”, com os “em vias de desenvolvimento” pelo meio. Mas também, ainda, pela publicação da tricentésima quadragésima quinta dissertação de mestrado, numa qualquer ciência social, acerca das “áreas urbanas de génese ilegal”, a reboque do folclorismo militante. Justiça seja feita à Economia, onde sempre pulularam jovens turcos. Normalidade: seis apontamentos sobre uma integridade maltratada (2020), de Carlos Leone (n. 1973), não se propõe colmatar lacuna alguma, mas arrisca a tornar-se numa peça pioneira, pelas mãos de um sub-51, a ecoar nesse nosso quarto vazio com vista para o mundo. E o autor, o que já não é novidade, num prócere, pelo menos na nossa paisagem metodológica de como exercer o ofício de pensar – o ofício da filosofia stricto sensu. Sobretudo no recurso, muito claro neste Normalidade…, e pouco comum em tempos passados, que é o da admissão, mais do que de filiações e de parentescos, de não-filiações e de não-afinidades (cf. Capítulo 2 «Ciência»).

 

Leone tomou o balanço de um grande acontecimento planetário – que não é difícil de antecipar: a pandemia de COVID-19 –, e inscreve a obra que aqui nos traz naquilo que poderíamos designar como a grande tradição dos opúsculos que têm a condição do mundo como pretexto. Se alguma cognação há a demonstrar, ela é de vulto, e medimos as palavras; e.g. a Querelle des Anciens et des Modernes através da recuperação que La Bruyère fez dos adágios de Bernard de Chartres; o J’Accuse de Émile Zola; A Carta de Lord Chandos de Hugo von Hofmannsthal; Observações de um Apolítico de Thomas Mann; ou Land und Meer. eine weltgeschichtliche Betrachtung de Carl Schmitt. E fá-lo com dois riscos indisfarçáveis, que se transformam num triunfo, tanto do texto que plasmou, quanto do argumentário que apresenta. São eles, 1) ter escrito em cima do trapézio dos acontecimentos, num jogo quase do right now, as we speak (porém, sem cair no delito de gosto do correspondente de guerra ao jeito, “Agora em directo, a partir de…”); fez, pois, com galhardia, qualquer coisa que um historiador amedrontado precaveria com um don’t try this at home2) ter tomado como tema condutor um conceito aparentemente inócuo, «a normalidade», daqueles que têm a bondade de intenções de que está o inferno cheio; e a obra demonstra-o urbis et orbis. Houve mais riscos que Leone correu, mas que farão seguramente parte do registo metodológico que é o dele. O mais saliente é o da incursão por campos maiores do conhecimento, muito diversos entre eles, e também muito minados pela autoridade de quem os vigia. Mas que ninguém ousará rechaçar, por força de uma transdisciplinaridade em que o autor é exímio. Aliás, ao ponto de Normalidade… , que aparece na ficha técnica associado a uma «Cátedra de Estudos Globais», poder incluir-se abertamente no género Cultura Contemporânea. Outro artifício a que Leone lança mão, poderia ter deitado o entendimento da obra a perder. É ele a occupatio da retórica de Cícero.  Sensivelmente assim: nada em Normalidade… é a fundo sobre a pandemia, e de tanto dizer que o não é, acaba por sê-lo inteiramente. Percebe-se o escrúpulo, mas não deixa de replicar muitas das salvaguardas em que o texto é pródigo. Por isso, ao contrário do que possa afirmar Carlos Fiolhais, que «um dos resultados desta pandemia foi a proliferação de livros sobre ela», a verdade é que terão sido antes desencadeados por ela. Este, tê-lo-á sido também. Todavia, não para explicá-la. Antes para entendê-la. E há um abismo entre as duas coisas. 

 

A noção de normalidade contém, já por si, perigos assinaláveis. Além de ser dada a vários reenvios metafóricos, de que são exemplos a homeostase em biologia, as leis consuetudinárias no direito, as tradições na história das ideias, o hábito em psicologia, a estática em física, a funcionalidade em arquitetura —, o que poderá levar a uma naturalização precipitada do conceito. Está, por outro lado, ainda rodeada de uma vizinhança semântica abundante, desde a regularidade à estabilidade, da tranquilidade à sanidade, da mediania ao equilíbrio, da imobilidade à segurança, da ordem à confiança, para nos ficarmos pelos termos em que a teoria social é mais versada. Para não esquecer ainda a figura da Aurea Mediocritas horaciana, na teoria literária. Este contexto poderia transportar Normalidade… para o nível de um bizantinismo ocioso, passe-se a redundância. Porém, aquilo a que se assiste pelo punho de Carlos Leone é à desmontagem de um conceito tentacular, fortemente ideologizado, e cuja filigrana o autor desarmadilha com um rigor de geómetra. A bem da denúncia, muito cristalina, daquilo que todo o aparato ideológico faz: inculcar convicções que se cristalizam. Como quem tem nos braços um autêntico “fenómeno social total” à la Marcel Mauss, Leone traça-lhe o mapa com uma economia discursiva rara. E fica assim: normalidade é a do endividamento público perpétuo e ubíquo («o mecanismo da dívida» [p. 128]):

 «De novo, não há aqui dívidas diferentes, boa e má. Há dívida, dinheiro que se tem de pagar depois, com juros geralmente (e se não houver juros, isso também não é bom para todos). A necessidade de os Estados se endividarem para apoiarem empresas enquanto as empresas não podiam garantir ao Estado receitas fiscais, agravando o déficit público, reforçava a normalidade, em rigor. O resto, saber o que conta para a contabilidade da dívida e o que é “fundo perdido”, o que tem juros e que não tem, etc., é intendência» (p. 93 [destaque nosso]).

Normalidade é a Pax Americana. Normalidade é a integração no ciclo dos acontecimentos históricos de todos os eventos que só o são por via de um oculocentrismo hegemónico, que funciona nas sociedades, em «hipertrofia mediática», como uma sístole-diástole sob o primado das “imagens”, o que quer dizer, entre o «esquecimento higienizador» e o «conhecimento tácito». A pandemia foi trazida à normalidade através deste processo.  O autor prefere não oferecer conclusões. Mas elas surgem por si. E não são edificantes no que se refere ao state-of-affairs. A normalidade é, pois, uma «inércia» tout-court: «A pandemia deu bom nome à normalidade que estava habituada a estar silenciada, a ser pano de fundo das disrupções tecnológicas e das revoluções de todo o género» (p. 117 [destaque do autor]).

 

Não sendo, in nuce, um livro sobre a pandemia da Covid-19, ele tem um momento altíssimo no Capítulo 1 «Pandemia», com a descrição, passo a passo, de como a pandemia foi atravessando diferentes etapas da consciência e dos comportamentos até ao estado de fadiga. Ombreia com a explicação que Georg Simmel dá do que é tronar-se blasé. De resto, Leone ainda nos brinda com esclarecimento, de índole etimológica, e dado em três linhas, sobre a diferença entre «pandemia» e «epidemia», o que continuamos a aguardar que um órgão de comunicação de referência nos ofereça. Já para não dizer as autoridades de saúde. Ficamos com pena que não tenha feito de igual forma para a palavra “medo”.

 

Além de muitos achados a serem seguramente desenvolvidos com outra sofisticação, como a tese da simetria entre choque sanitário e choque económico, Normalidade… esconde um volte-face argumentativo que não ocultaremos, mesmo perante uma legião de anti-spoilers, até porque é absolutamente necessário lê-la, à obra, para que dele se retire todo o gosto intelectual. E reza assim: «a pandemia foi criada pela normalidade humana» (p. 45). Há ainda uma série de pérolas que se habilitam a blagues destes tempos, desde o «epifenómeno Thurnberg» (p.38), ao «há um modo de produção asiático de normalidade» (p. 35), até «a COVID-19 provou de facto ser uma gripe, uma gripe económica mundial». (p.47). É evidente que houve ainda uma outra dimensão em que Leone foi temerário. Ao largar-se a algumas conjecturas, não tornou o que escreveu irredutível a previsões. E daí, podermos dar-nos ao desfrute, um pouco grosseiro, de apontar em que é que falhou, ou em que é que assim não foi. E pois: no que à ciência diz respeito, houve um excesso de zelo ao apontar a Medicina como saber insigne que, nos infortúnios sanitários que se viviam, tomaria a ribalta – cedo se percebeu que, por razões da sociologia da actividade clínica (o corporativismo indómito), a classe dos médicos iria enjeitar qualquer protagonismo, e o chão foi tomado pelas especialidades mais obscuras: epidemiologistas, microbiologistas, virologistas, especialistas em saúde pública e até matemáticos se chegaram à frente; no que o livro de Leone é certeiro foi no diagnóstico de um «modelo militar» (p. 64) a que a decisão política viria a estar exposta – basta apontar a glória do vice-almirantado no processo de vacinação, que deu em notícia aclamatória no The New York Times, e deixou uma parte da nação escandalizada. Para alívio da outra.

Normalidade: seis apontamentos sobre uma integridade maltratada resulta da compilação de uma série de notas e chavetas [sic] para uma conferência que o autor tinha aceitado proferir nas vésperas de decretar-se a pandemia, e ressente-se disso nalgumas passagens vagamente escolares, que só no âmbito de uma alocução para auditório teriam cabimento. Estão nesse pé as considerações sobre a supina dignidade da medicina enquanto ciência, e a da política «decorre[r] por inteiro na esfera das mensagens mediatizadas» (p.110). Sem novidade. Pelo que aqui, dispensáveis. Já menos tragável, após toda a tinta pós-estruturalista derramada até hoje, é o uso de uma noção como a de «Humanidade», sobretudo numa tirada sobre «mudanças decisivas no planeta» (p.141), isto num autor que confessa o seu pessimismo. Aliás, a mesma pecha ocorre já em outra obra dele, Crise e Crises em Portugal (2016), com o termo «civilização» (p.34). Ali, com a atenuante de ser um ensaio publicado em colecção de circulação alargada. Agora, no limiar do inaceitável em Normalidade… está, se o lemos bem, o superlativismo infra-crítico com que é tratado o caso George Floyd. Assim se lê: «Haverá poucos documentos registados na História que lhe sejam comparáveis em valor simbólico» (p. 134). É que o pós-estruturalismo deixou à solta essa teoria cínica de nome semiótica, que se dedica a denunciar as falácias da boa imagem. Uma delas é a da transparência do meio.

Nota: em caso de reedição, não calharia mal a revisão de algum léxico que torna a prosa menos excelsa, e por vezes, menos rigorosa. Estão neste caso: o «reporte» (p.58); a «classe possidente» (p.34); o afectado «expectável» (p.43), muito melhor vertido pelo simples “esperado”; «doenças mentais» (p.58) por “distúrbios psicológicos”; «solucionar» (p.49), muito mais claro um “resolver”; e o abscôndito «pericolusidade»(p.79).                                             

JBC

22 janeiro 2022