. espectáculo . música .

Orquestra Gulbenkian

Hannu Lintu, Maestro
Karita Mattila, Soprano

 

Wesendonck Lieder,

Richard Wagner (1813 – 1883)

 

Sinfonia n.º 1, em Ré maior,

Gustav Mahler(1860 – 1911)

[Edifício Sede – Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, qui, 13 jan 2022, 20:00]

As Titãs

 

Como seria honroso que este artigo se debruçasse sobre o conteúdo, a substância, a matéria, e ainda a forma do recital no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, do passado dia 13 de Janeiro, composto pelas Wesendonck Lieder de Richard Wagner (1813 – 1883), na voz de Karita Mattila, Soprano, e a Sinfonia n.º 1, em Ré maior de Gustav Mahler (1860 – 1911), ambas as peças pela mão da Orquestra Gulbenkian sob a batuta do Maestro Hannu Lintu [bisou no dia seguinte, 14 de Janeiro; ambas as récitas esgotadas]. Repita-se: como seria airoso que pudéssemos falar com propriedade daquilo que as palavras das Wesendonck Lieder representam na linhagem da tradição do poema sinfónico, e de como a autora dos versos, Mathilde Wesendonck (1828-1902), teve, por um lado, a ousadia, e por outro, o desassombro de exigir que a respectiva autoria se mantivesse incógnita até à morte dela; Wagner musicou-os, aos versos, enquanto alimentava por Wesendonck uma paixão assolapada, que quase arruinou os matrimónios de cada um; passou-se isto, durante o período em que escrevia o Tristão e Isolda (1959), e uma das Lieder, «Im Treibhaus» («Na Estufa»), tem precisamente o subtítulo «Studie zu Tristan und Isolde» («Estudo para Tristão e Isolda»), que arranca tal e qual como a abertura do III Acto daquela ópera, no qual o compositor «ousou qualquer coisa de inverosímil, quando (…), se atreveu a introduzir uma passagem em compasso quinário; desde então, as ousadias post-wagnerianos não pararam mais» (Herzfeld, 1981: 240); e dizer ainda, com o mais experimentado reconhecimento, de como Karita Mattila a dominou num tenuto cheio de autoridade. E como seria digno revelar, ainda, o espanto de escutar Mattila a esgrimir os dois primeiros versos da terceira estrofe da quarta Lied da série, «Shmerzen» («Aflições»), “Ach, wie sollte ich da klagen,/ Wie, mein Herz, so schwer dich sehn”, com um florete vocal tão percutante quanto flamboyant. Mattila não se fica por cantar. Está o tempo inteiro en personnage, e confere ao canto uma dimensão dramática e pungente igual à altura que tem. Altura artística. Mattila não é apenas um astro fixado no aparato sideral da cena lírica, nem somente a diva do momento. Ou já eternizada. Karita Mattila é uma Titã. Ouvi-la, transforma-nos em deuses rendidos e extáticos. E desta vez, não foi preciso a avalanche in tenebris, que nos ofereceu em 2017, ainda no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, onde também trouxe estas Wesendonck, mas que subalternizou com uma potestade temível nas Quatro Canções, op. 2 de Alban Berg (1885-1935), e em cinco Lieder de Richard Strauss (1864-1949), e que bem recordamos como, então, se ofereceu a dar-nos o gosto de vê-la, em cena aberta, aquecer a voz. Em «Ah, amor, devo partir, op. 21 n.º 3» de Strauss, calcorreou uma escala maior de arranque com semitom fá, em modo de “seis segundos dos zero aos cem”. Deteve-se perto da timpanotomia. Desta vez, não. Foi tudo com menos foguetório virtuoso, mas também mais delicado e comovente por um timbre à la Maxim’s. Elegante.

 

Como gostaríamos de discorrer com o merecido saber sobre a outra Titã da récita. Esta não em qualidade figurada, porque verdadeira e autenticada, pois o autor assim mesmo a baptizou. A 1ª Sinfonia de Mahler, a “Titã”, que, quando estreada, como Tondichtung (poema tonal), em 1893, foi o resultado de um esforço ingente com que o compositor se debateu, atrelado à miséria da reputação de “apenas um maestro competente” — compositor bissexto. O que sucedeu foi um prodígio maior. Com semelhante peça, Mahler pôs um ponto final na música do século XIX, chame-se-lhe romântica ou “charrua” do classicismo. De resto, aqui, Mahler denuncia claramente como desde Ludwig van Beethoven (1770–1827) até Johannes Brahms (1833 –1897), a música oitocentista, à conta do primado da harmonia e da melodia, e ainda da formação da orquestra sinfónica, foi essencialmente a amplificação de temas e motivos populares. Uma qualquer cantiga assobiada, entre um riacho e uma represa, deu em andamento sinfónico. É o que sucede aqui, no «3. Feierlich und gemessen, ohne zu schleppen/ Solene e mensurado, sem arrastar», com a celebérrima citação do «Frére Jacques», a que Mahler dá umas carambolas que transfiguram o tema de ridículo em patético, de hierático em melancólico. Que certeiro seria estar na posição de poder afirmar que Hannu Lintu o conduziu com alguma imprudência, mostrando-o, logo de início, na feição que o tema tem de soturno, não lhe dando a alegria que mais adiante, na peça, permite percebê-lo como enfadonho. Houve ainda a falha clamorosa dos pizzicati no «1. Langsam, schleppend/ Lento, arrastado» ao terem sido esmagados pelo naipe dos metais, pizzicati que são estruturantes para a coerência desta sinfonia, sobretudo na ligação entre o primeiro e o segundo andamento, no qual, sim, a Orquestra Gulbenkian e Hannu Lintu souberam "pizzicatear" com firmeza. Mas depois desta sinfonia encostada ao “Irmão Tiago”, e findo o século XIX, acabaram-se os trauteios e os vocalizos orquestrados, porque ela mesma se encarrega de lhes pôr termo (só Béla Bartók [1881-1945] ainda se atreveu a insistir, e inovar, nesta lavra). A partir daqui, começa um modernismo sem regresso, que Mahler não deixou de cavalgar, sempre no seu canto de artista do patológico e do exagero. É por isso, talvez, que, sendo uma obra que marca o fim de uma época, a Sinfonia n.º 1 de Mahler, a Titã mantém uma solenidade intocável. E um visionarismo hipnótico. Ouve-se nela, tanto do passado como do que estava para vir. Quem, neste recital, nos fez companhia, dizia assim: “está aqui tudo, desde a Revolução Russa ao sufragismo desesperado, das Grandes Guerras ao laicismo militante, dos movimentos de massas à União Europeia, do cinema à arte abstracta. É caso sério: a Titã é um caleidoscópio. Para Gustav Mahler não houve retorno. Tornou-se o compositor fétiche do século XX. À força das maiores razões. De tal modo que teve de apanhar com Visconti às cavalitas, de mãos dadas a Thomas Mann. Na Número 1, podemos estar seguros de que quem se lhe puser aos ombros, não deixará de estatelar-se. Hannu Lintu não o fez, mas antes de empoleirar-se em Mahler #1, teria de re-abater Klaus Tennsted (1926-1994) que meteu esta peça no bolso, e que a cada vez que por ele se escuta, parece tirada do chapéu.

 

Porém, deposta a occupatio anterior, este artigo continua absolutamente a não ser acerca de questões de estética musical, de história da música, nem de preceitos musicológicos, que seriam, na verdade, o que constituiria a substância de que valeria a pena falar. Este texto é sobre aspectos da sociologia das artes do palco, e da respectiva recepção. É sobre como na passagem pela nação de uma das maiores artistas do século XXI [read my lips, 21th Century] não houve uma única câmara de televisão que fizesse o obséquio de dar-lhe espaço num noticiário decente, mesmo que para isso, esta Titã tivesse de sobrepor-se às notícias sobre o “nibelungo” Novak. É sobre como passadas duas gerações sobre os jovens turcos que corriam das Belas-Artes e do Conservatório Nacional, para a plateia deste Grande Auditório, e que estavam a sair da adolescência, mas queriam, indómitos, escutar o «Fireworks» ou a «Sagração da Primavera» de Igor Stravinsky (1882 –1971), ao invés, a população que constituía o auditório para escutar esta duas Titãs, era ultra-trinta-e-cinco, com média de idades pelos oitenta e três anos e meio. É sobre a infantilização vigente dos espectáculos, que recorrem a dispositivos paternalistas de reeducação dos públicos, como, por exemplo, a utilização de legendagem electrónica para identificar o andamento que se seguirá na récita da peça tocada. É sobre como se continua a tossir, a espirrar, a fungar e a desembrulhar rebuçados em celofane, enquanto “há música”. No ar. É sobre o estado miserável a que chegaram as plateias, com um entusiasmo reles sobre o que se passa para lá da ribalta. Prefere-se segredar ao vizinho do lado. É sobre o engodo das sessões esgotadas (mesmo que em tempo de pandemia), e que depois se apura desdentadas, com cadeiras às moscas na precisa primeira-fila, que usa ser o garante primeiro de uma comunhão entre intérprete e espectador. Nada disto é novo. Parece que in illo tempore enquanto tocava o «Don Giovanni», se aproveitava para apalavrar suínos e dotes das filhas casadoiras. Mas — céus! — entretanto, já houve, pelo meio, Wagner que mandou apagar as luzes da sala.

 

Nota: na imprensa, houve dois artigos de matéria e crítica musical sobre estes recitais, que, como habitualmente, abundam em mais superlativismos do que o artigo anterior, basta tomar o pulso aos respectivos títulos. Ou por outro lado, caem na lura das trivialidades e do decepcionismo:

O carisma de Karita Mattila, por Cristina Fernandes no Público, em 11 de Janeiro de 2021

Um Wagner discreto e um Mahler exuberante por Cristina Fernandes no Público, em 16 de Janeiro de 2022.

JBC

17 janeiro 2022 

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