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«PHILIP ROTH, A Biografia» 

de Blake Bailey

tradução de Francisco Agarez

[Dom Quixote, 2021]

Merry Christmas, Mr. Roth

 

O destino da obra literária de Philip Roth (1933-2018) encaminha-se a passos largos para vir a tornar-se numa leitura de estação. Mais propriamente, de ‘Quadra’. No caso, destronando o titã, já duplamente centenário, Charles Dickens (1812-1870), como ‘o escritor de Natal’. Não se infere daqui, qualquer desqualificação das conquistas e proezas artísticas de Roth, sobretudo no âmbito da ficção, com os trinta e um romances que publicou, e tendo, a cada um, entretecido mais a teia de recursos sofisticados, entre matéria biográfica, ‘escritores fantasmas’ (os usuais alter-ego e heterónimo necessitam de revisão teórica urgente perante a intrepidez de Roth), a autoficção, a história contra-factual, a meta-narrativa, o roman-à-clef, as filiações literárias, a paródia, a sátira, os ‘frescos’ político-sociais, isto desde a oficina bem temperada de jovem-ás, à joalharia de ancião refinado. O que haverá sim, a celebrar, é a ironia de um destino que agora o resgata da condição de quase-maldito, de pornógrafo, de desbocado, de polemista e de desumano [never-Nobel], colocando-o debaixo do protectorado daquilo que de mais fascinante a tradição da literatura ocidental nos legou. Pelo menos, desde Lev Tolstoi (1828-1910) [too-big-to-Nobel]: o drama, o enredo, a causa de família. Foi Roth, ele mesmo, que o antecipou como sendo o grande tema condutor que era o dele. Fê-lo numa das duas obras autenticamente autobiográficas que deixou, The Facts, A Novelist’s Autobiography (1988) [Os factos: autobiografia de um romancista (2014), trad. Francisco Agarez, Dom Quixote]: «Narrative is the form that [my] knowledge takes, and [my] repertoire has never been large: family, family, family, Newark, Newark, Newark, Jew, Jew, Jew» (p.16). Não colherá, porém, apanharmos o balanço um tanto desarticulado da associação entre a ‘família feliz’ e a quadra natalícia, não só pela erosão que já leva, mas sobretudo porque tiraria toda a nobreza aos ‘motivos’ de Roth. Aliás, não foi porque as crianças são maltratadas nos romances de Dickens, que o Natal lhe caiu em cima. Terá antes sido pelo exemplo de redenção e expiação em que se transformaram, à medida que as carretas da modernidade faziam o seu cortejo fúnebre sobre os carris do século XIX.

O mesmo sucede a cada dia com Roth. A infatilização dos comportamentos nas sociedades, chamemos-lhes assim: contemporâneas — mas mais acertado seria um simples ‘sociedades em modo de videojogo’ —, vai fazendo da obra de Philip Roth uma extraordinária bula sobre como tornarmo-nos a todos mais crescidinhos. E, assim, ajudar-nos a sair de um Natal que não seja só embrulhos feitos de optimismo pacóvio e de virtudes cínicas. Às mãos de um escritor de origem judaica, constantemente acusado de traição étnico-cultural (o ominoso «self-hating», ou «self-loathing», ou «self-denying» Jew, que também manchou um espírito imenso como Hannah Arendt, e que a tradução da obra aqui tratada, resolve menos bem, vertendo-os por «ódio à condição de judeu» [p. 253, etc.]); à mãos de um escritor tido como misógino e misantropo; de um escritor predador da vida dos outros; às mãos dele, tudo isto alcança níveis de um desconchavo deliciosíssimo. Acusações falsas — ‘Receberemos a cada ano a sua lição de Advento, Senhor Roth’.

O que há a perguntar, antes de mais, é a razão para que Roth muito tenha desejado este Philip Roth: A Biografia (2018) de Blake Bailey, a qual patrocinou, autorizou, e praticamente promulgou. Tanto a obra como o biógrafo. Volume que ultrapassa as mil páginas. Autor que lhe dedicou sete anos. Sobretudo, quando com Roth, por via da real-masquerade que é a ficção produzida, pensaríamos ter as cartas todas voltadas. A resposta é comovente. Philip Roth foi a vida inteira um homem sofrido e sofredor, a quem sempre alguém, ou algum gang (nunca o dele) retiraram a possibilidade da última palavra. E quis ele, pois, de uma vez por todas, fazer o papel do grande moralista, e ficar com ela. Era-lhe devida e merecida. Teve de esperar pelo trabalho mais difícil de todos. Nas suas próprias palavras, «o trabalho de morrer» (sobre o pai de Philip, Herman Roth: « lutava por cada sopro de respiração, com uma veemência pavorosa, uma derradeira demonstração da tenacidade obstinada de toda a sua vida… Morrer é trabalho e ele era um trabalhador» [p. 993]). Talvez um dos aforismos mais belos da literatura contemporânea. A espera pela morte de Philip Roth teve o seu proveito, isto porque as revelações biográficas são suculentas, apesar de ser inegavelmente uma biografia para iniciados em Roth. De resto, é uma biografia de ‘factos de vida’ que informaram a obra, e não uma pomposa “biografia literária” com a dissecação crítica da obra que teria preenchido uma vida. Isso fê-lo ele. Vivo: «I needed clarification, as much of it as I could get — demythologizing to induce depathologizing» (The Facts: p.7).

E para ficarmos pela desmontagem das acusações mais sérias, esta biografia dá-nos a saber que: a) Roth foi sempre um fervoroso defensor do Estado de Israel, e um cultor e divulgador da obra de outros escritores judeus menos atirados para as ‘bocas do mundo’, como Ahron Appelfeld (1932-2018), ou Norman Manea (n. 1936), dois confidentes maiores. Logo, não lhe assentava muito bem o libelo de judeu-com-vergonha-de-si-mesmo. b) Durante toda a vida, tanto na qualidade de agentes, de editoras, de juristas, professoras, mentoras, Roth colaborou sempre e sempre nutriu amizades verdadeiras com mulheres, que respeitava, admirava e sem a opinião das quais mal dava um passo: misógino? – a fatiota fica larga. Outra questão diferente será a da forma como a ficção que urdiu foi um vaso comunicante para os desencantos e desencontros amorosos que um homem heterossexual de nível (–)1 na escala de Kinsey, e sem um único osso monogâmico no corpo, coleccionou num tanque com uma legião de enganadas e desgostosas — e cheias de razão. Sim, nisso, era mau rapaz. Parafraseando o título de um artigo de António Guerreiro no Público-Ípsilon (27-Ago-2021), e no qual Roth apenas poderia ser visado à razão de um apêndice anatómico a omitir: «bons escritores, maus cidadãos». c) No que diz respeito à misantropia e à fúria com que muitas vezes terá tratado, nos livros, os que lhe eram próximos, deixa-nos calados a vida social que lhe foi dada traçar (teve um flirt com a viúva presidencial, Jackie Kennedy [p. 349-350]), e mais tocado se fica ainda pela quantidade de amizades que o rodearam, algumas delas como primeiros leitores dos originais que dava a apreciar, e que chegavam ao descoco de pedir-lhe que fossem retratados na ficção dele — sentir-se-iam homenageados.

Fica também por responder o porquê da ousadia de trazer a tradução portuguesa este Philip Roth: A Biografia, em volume de grande circulação, numa editora stakeholder do mercado livreiro. Acima de tudo, pelo trabalho de fôlego que este trabalho constitui, nada calhado para grandes vendas. E também pela minuciosa scholarship em que se inscreve, nada talhada para leitura balnear. É verdade que Philip Roth tem tido, nos últimos anos, uma presença de aparato na edição e nos escaparates em Portugal. Isto só poderá significar que Roth é lido, entre nós, em ampla escala. E muito disto se deve à sorte que lhe coube com o trabalho de tradutores excelentíssimos como Francisco Agarez (também ele tradutor desta biografia), Fernanda Pinto Rodrigues, Maria João Delgado e Luísa Feijó (na fidelíssima tradução de Pastoral Americana [1999]) – depois das falsas partidas de Ana Luísa Faria (em O Complexo de Portnoy [1994]), de Filomena Andrade de Sousa (em Traições [1991], que Agarez traduziu recentemente, de forma mais certeira, por Engano [2013] – orig: Deception [1990]) –, e, for fim, da curiosidade que é A pandilha : as falcatruas de Tricky e os seus amigos (1973), tradução de Our Gang (1971) por Josué da Silva: imagine-se, o primeiro romance de Roth traduzido e publicado em Portugal, seguramente à conta do contexto e do interesse pelo caso Watergate e o impeachment a Richard Nixon – trata-se de um ‘romance-sátira’ sobre o trigésimo sétimo Presidente dos Estados Unidos da América.

A verdade é que a recepção de Philip Roth em Portugal, além de muito tardia, não foi auspiciosa. O Complexo de Portnoy, romance-escândalo que deu a Roth prestígio mundial, lhe alterou implacavelmente a persona literária, e lhe recheou a conta bancária com quantias onde a fila de dígitos é abundante (é, ainda hoje, a obra de Roth mais vendida), acabou, na primeira edição da Bertrand de 1994 (o original é de 1967), a ser resgatado dos fundos e, por basto tempo, vendido, a saldo, em tendas de livros à beira de estações ferroviárias. A intelligentsia da nação também não lhe foi, à época, nada amistosa. Mário Cláudio (n. 1941), ainda em 1998, no conto «O Último Faroleiro de Muckle Flugga», nos livrinhos da coleção 98 Mares da Expo 98’ Lisboa, coloca estas palavras na boca do protagonista: «Sexta-feira. Às voltas com um romance de Philip Roth, Portnoy’s Complaint, uma chatice de ponta a ponta, mas daquelas que por um motivo qualquer não nos autorizam a coragem de as pôr de parte.» (p. 34). Não poderia ocorrer nada de mais lapidar na saga da opinião anti-Roth do que desconsiderá-lo usando as mesmas armas que ele, i.e.: enfiá-lo à má cara numa ficção.

Foi necessário o tremor vindo de França — Philip Roth: Le Géant (entitulava o Le Monde) — após a publicação de The Human Stain (2000), para um espírito maior, francófilo ajuramentado, vir dar-nos a conhecer Roth com boas maneiras. Falamos de Eduardo Prado Coelho que leu Roth como um poeta (merecia ser recuperada a crítica comovente que escreveu, nas páginas do suplemento «Mil Folhas» do jornal Público, sobre The Dying Animal [2001], em Setembro de 2004, antecipando a tão indiscutível atribuição do Nobel, uma obcecação que nunca se concretizou; e que nesse ano, foi parar a mãos ainda mais escandalosas, as da so to speak pornógrafa Elfriede Jelinek [n.1946]). Neste afã disseminatório, fomos ainda brindados pelo entusiasmo da jornalista e editora Tereza Coelho, que costumava fazer alarde de ter lido tudo de Roth. O que, de facto, esta biografia mostra ser pouco provável. Roth escreveu ensaios e peças de teatro, e outros textos dispersos, que tiveram de ser recolhidos por via de pesquisas e investigações académicas, o que pode deixar qualquer leitor com afinco, largado a desejos molestos . Por isso — é um aviso —, podemos ter lido todo o Roth: com grande pena nossa, apenas aquele que foi publicado.

Mas a grande fortuna de Philip Roth em Portugal deve-se à jornalista Clara Ferreira Alves. Sobretudo ao modo como nos anos da administração Bush, interpretou e divulgou uma fecundíssima visão do romance imponente – um monumento – que é A Conspiração contra a América (2005), dentro do panorama dos mais temível USA Patriot Act. Fê-lo por expedientes vários. Mas o espaço televisionado que lhe dedicou, deu a Roth um momentum português que não teve parança. A partir deste instante, instalou-se o foguetório, e Roth entrou nas tabelas lusitanas. Por vezes, com tal veemência que resultou em atropelos à integridade cronológica da obra. E.g.: qual o sentido de publicar A Lição de Anatomia (2015) desligada do romance gémeo Zuckermann Unbound (1981), cuja gemiparidade de resto está fixada na compilação Zuckermann Bound (1998)?

Editar, publicar e vender Philip Roth: A Biografia (2018) de Blake Bailey é um arrojo. Talvez um desvario. Veja-se que estão por traduzir biografias competentíssimas, e também elas encorpadas, de colossos de outra nomeada: onde está a tradução e edição de Dickens (1990) de Peter Ackroyd [mil cento e noventa e cinco páginas] ? Onde está o Virgina Woolf (1996) de Hermione Lee [oitocentas e noventa e uma páginas] ? – Lee, uma feminista, assinalável estudiosa e apreciadora de Roth, que ele chegou a convidar para biografá-lo de jure. As perguntas acumulam-se. Mais que não seja porque se antecipa o desastre que é um leitor interessado em começar a dedicar-se a Philip Roth, e iniciar por aqui. Sobretudo, logo a partir dos primeiros capítulos, sem que tenha a mais módica noção do que é uma linhagem judaica, um shtetl, os apelidos judeus, a assimilação americana, as regras kosher (está tudo muito à flor da pele nos romances do biografado); pois dirá: atiraram-me com mil cento e doze páginas em cima, e nem as datas de nascimento e de morte consigo dizer claramente quais são e onde estão. Sai agredido. E nem sequer foi submetido a esse embate mortal que é a leitura, por exemplo do romance The Breast (1972). Tem cento e vinte páginas. A traduzir.

O que não pode negar-se é que a publicação desta biografia em Portugal é imensamente útil. Marcará o gosto de uma época e será a grande reeducadora do género biografia, tão maltratado no nosso espaço público, geralmente produzida por curiosos ou deslumbrados, quais deles os piores. Sempre cheias de superlativismos sobre as vidas biografadas e abundantes em generalidades e lateralidades, da índole, «a Marquesa saiu às cinco» (Valéry dixit). Aqui, temos a oportunidade de penetrar no espírito do biografado e chegar a discordar dele: 1) Goodbye Columbus (1959), o primeiro romance – diz ele, um romance menor. Valeu-lhe em 1960, aos vinte e sete anos de idade, o National Book Award, coisa que Bernard Malamud (1914-1986) só viu já quarentão. Acontece que se trata do único romance de Roth a que caberia bem a categoria crítica de “sem tempo”. Vulgo, intemporal. É o que lhe dá um acerto e uma frescura estimáveis. Não se vê por ali qualquer nódoa que o tempo tenha deixado. E acontece ter um final que só a um menino-prodígio é dado tecer. Sigmund Freud recomendá-lo-ia. Por isso, Goodbye Columbus, ontem como hoje. A ler e reler no início e no fim de todo o Roth. 2) Os últimos romances, no género novella, estertores geriátricos – diz ele, sempre com voz fraca e tom falho. Atiremo-nos a Exit Ghost (2007), o melhor, senão o único, comeback de uma personagem bigger than life, que acontece com quarenta anos de diferença entre ter-se estreado e ter-se revelado. Ela é Amy Bellette/ Anne Frank – o(a) mais famoso(a) dos(as) escritores(as) judeus/judias. Nem a Tolstoi foi dada a oportunidade de dar estreia a uma personagem duas vezes seguidas, de mais a mais, passadas quatro décadas. 3) Os romances de final de vida de Philip Roth, são aliás, uma estreia todos eles. São o epítome daquilo que a longevidade permite fazer. Desenhar sem nunca o ter aprendido. Subir a palco sem nunca o ter feito.

Philip Roth há-de ser, a curto trecho, a leitura de Natal de todos nós. Contra muita intoxicação ideológica. A mais funesta talvez seja a da cultura audiovisual, aquela que não outorga planos fixos com mais de três segundos. E nos energiza ao ponto de uma falta de concentração patológica. A este respeito, vale a pena recuperar, na íntegra, um episódio a que Philip Roth se viu sujeito, que vem relatado nesta biografia, e que o escritor incluiu, praticamente ipsis verbis, num dos romances, Deception (1990). Citamos do texto de Bailey:

Pouco depois de chegar a Londres, Roth estava sozinho em Fawcett Street, a ver televisão, quando passou um anúncio: Um ator desempenhava o papel de Fagin [em Oliver Twist de Charles Dickens], reforçado com um nariz falso e um sotaque iídiche; quando caía o pano, o actor ia para o seu camarim, retirava o nariz e outros elementos de caracterização e revelava-se como era: um inglês pomposo. «Entretanto», recordou Roth, «tirava uma cigarrilha de um maço (o anunciante) e incensava-lhe as virtudes. “É suave, é saborosa, é relaxante”, dizia, e depois, com um brilho nos olhos e o sotaque perverso de Fagin, acrescentava, “E é barata”. Fiquei tão espantado que telefonei ao meu amigo Al Alvarez, que vivia em Hampstead, a contar-lhe o que tinha acabado de ver. Al, que é judeu, riu-se e disse: ”Tu habituas-te.”» (p. 548-49)

Há, como deverá suceder com a maior parte das biografias, uma hidden agenda, uma intenção oculta da parte de Roth ao promover o levantamento deste memorial gigantesco. Mas como auto-ficcionista incontinente que era, aquilo que seria de não confessar, clama-o ele a todo o instante. Quer a desforra. Esta biografia está escrita sobre os escombros e os ferimentos provocados pelo fracasso daquilo que Roth esteve mais perto de constituir como família dele, só dele. Sendo que Roth acabaria apanhado num retrato ignóbil. Após o fim do casamento com Claire Bloom (n. 1931), a inesperada namoradinha de Chaplin em Limelight (1952), e a partir daí, a eterna namoradinha de Inglaterra e de seus palcos prestigiados, a actriz inglesa ofereceu como prenda de divórcio a Roth um livro, Leaving a Doll’s House, que até aos dias de agora, continua a ser juridicamente avaliado sobre se é ou não veículo de conteúdo difamatório para o escritor americano. O que passou a alimentar o pouco ímpeto que ia restando a Roth foi procurar a oportunidade de fazer escutar a sua versão da família que construiu com Bloom durante vinte anos. Ainda resultou daí um romance sofrível, Casei com um Comunista (1998), mas o ridículo estava ao virar da esquina. Foram necessárias as mil páginas deste Philip Roth: A Biografia para trazer alguma transparência ao caso. Mas, ainda assim, os pormenores não são bonitos.

Quando Marilyn Monroe e Arthur Miller [1915-2005] (que Roth desconsiderava) contraíram matrimónio, em 1956, passou a circular um cometário jocoso que tentava de alguma forma celebrar e ridicularizar, a um tempo,  a família americana. Rezava assim: o corpo da América casou com a cabeça da América. Já quanto à união Roth-Bloom, a coisa foi muito mais sórdida, e arriscada, porque a glande da América casou com os lábios de Inglaterra.

Nota: A obra de Philip Roth, The Facts, A Novelist’s Autobiography (1988), faz uso de um recurso da retórica colhida de Cícero designada por occupatio, e que consiste em insistir que se vai ignorar determinado assunto, afirmando-se repetidas vezes que não se irá falar nele, para, na prática, ir-se falando sobre ele. Mas a estratégia mais desarmante da obra é a de Roth escrever uma carta ao ‘escritor fantasma’ dos livros que ele mesmo escreve, o vulgarmente reconhecido alter-ego, Nathan Zuckerman, pedindo-lhe a opinião sobre o manuscrito de The Facts, e perguntando se deve ou não publicar e revelar os factos que contém. Zuckermann responde. Com uma longa carta que é um tratado rematado sobre as voltas e reviravoltas que escrever ficção comporta. E aproveita para dar uma 'liçãozinha' a Roth. Localizemo-nos neste imbróglio – então: é Roth a escrever enquanto Zuckerman, que responde a Roth a pô-lo em sentido sobre o que o próprio Roth escreveu. Deve ser difícil encontrar formigueiro mental mais desafiante e com sabor mais fino a génio, mesmo que do mal. É por isso que valeria a pena citar extensamente. Mas como Zuckerman recomenda: «Existence isn’t always crying out for the intervention of the novelist. Sometimes it’s crying out to be lived» (p.191). Por isso, procure-se. Viva-se. 

JBC

janeiro 2022