. livro . inter-artes .

«Diário das Nuvens»

de

 João Francisco Vilhena [imagens]

João Paulo Cotrim [poemas]

[abysmo, 2021]

 

Nuvens no Castelo, ou os Nefelibatas Encartados

 

Há um par de semanas, construíram-se Nuvens no Castelo. A inversão do adágio popular é um achado irresistível, mas torna-se-á claro que fica aquém de fazer jus à ocasião. E para não baixar guarda na ambição — tanto a respeito do que aqui nos traz, quanto da ocasião —, impõe-se deixar fixado no tempo: Nuvens no Castelo, assim o designamos, foi o que sucedeu no lançamento do livro, Diário das Nuvens [abysmo] de João Francisco Vilhena [imagens] e João Paulo Cotrim [poemas], com lugar na Sala Ogival do Castelo de São Jorge, em Lisboa, na tarde do passado dia 20 de Novembro. E nada se viu do delírio que construir 'Castelos nas Nuvens' significa. Poder-se-ia, desde já, descartar a importância assimétrica da ocasião “lançamento”, em confronto com a vera cosa, o objecto “livro”, isto em nome de uma exaustão, em torno dos eventos ditos culturais, que vai contorcendo o espaço público, com iniciativas semelhantes que se põem às cavalitas de um prestígio celebratório, apenas para mascarar o mercantilismo fetichista.

Acontece que nada disto maculou as Nuvens no Castelo que se levantaram no lançamento de Diário das Nuvens. Pois passou por ali um sopro que mais do que bafejar um lançamento protocolar, com a pompa rotineira, antes transportou o “objecto” para ‘altas esferas e desejos, com o coração a bater mais’. Apresentação do livro e livro apresentado entrelaçaram-se numa ocasião de boa memória. Trouxe-se fio ao «diário», o que fica despachado com a imagem de ter-se claramente tomado o 'fio à meada'. Autores, apresentação e os discursos respectivos compuseram bem mais do que um “lançamento”; bem mais do que uma conversa informal entre amigos — o que também tem vindo a desenhar o gosto destas ocasiões, para disfarçar a má-consciência de andar a alimentar-se um culto dos ‘amigos do livro’, que pouco mais é do que uma reverência a autores e tutti-quanti. Se não é carregar de mais, com o paradoxo, o que ali ocorreu foi desanuviar o céu com nuvens.

A meada é esta, e tem contornos de desassombro existencial: debaixo de restrições em período de pandemia, e vivendo os autores nos últimos pisos das moradas de cada um, puseram-se a olhar para as nuvens [de igual, quem, no lançamento, recitou, com nobreza e sentimento, alguns dos textos, a jornalista Elisabete Caramelo]. E com as almas ao alto, assim se lançaram a captá-las. Às nuvens. Como quem denuncia a injustiça dos dias malbaratados.  Este desiderato deu balanço a um processo de tradução, a um tempo literária e imagística [e a este termo somos obrigados], do desassossego que se instala à conta de um tempo que passa, ou que deixa de passar, ou que não volta para trás. Daqui, resultou uma quase ‘performance diária’ [tudo pode acompanhar-se aqui], que se não foi terapêutica, foi seguramente propedêutica. Para o que havia de seguir-se.

E o que sucedeu foi que João Francisco Vilhena e João Paulo Cotrim engendraram um “objecto” que arrisca inscrever-se no rol dos testemunhos mais elevados sobre os tempos da pandemia desencadeada pela covid-19. Em primeiro lugar, porque não se deixaram cair em tentação: a de serem participantes dos ‘acontecimentos no terreno’, como qualquer autor de almanaque almejaria. Mas sim, porque, através de um golpe de antecipação [um olhar visionário seria talvez a ênfase justa] lançaram mãos, de jeito a reterem, senão a preservarem, aquilo que um confinamento arruína: o fotógrafo, o tempo sequestrado; o escritor, as vozes confinadas [e separar já as duas ‘expressões’ de Diário das Nuvens é uma traição acabada que se comete ao objecto “livro”]. Este toque vitalista, e inesperadamente patrimonializante, é o que torna Diário das Nuvens num livro ambicioso. E o resultado arrecada glórias várias.

Passamos por cima de uma teorização densa acerca da relação entre as artes, e que ultimamente tem obtido avanços estimáveis no campo dos Estudos Inter-artes. O conceito com que, neste caso, seria fecundo confrontar Diário das Nuvens, talvez fosse o de ecfrásis. Ou ainda, o debate sobre o regime de verdade das imagens, com a devida análise apetrechada e portentosa de uma «theory of the good eye» [teoria do olhar treinado].

Mas como objecto ‘livre-confinado’, e intrépido que é, Diário das Nuvens não se deixa aprisionar. Contra um autêntico “cloudbuster”, diríamos, não há artilharia teórica que colha.

Já tendo como pano de fundo a tradição das ‘transposições de arte’, tudo poderia piar mais fino. E aqui, não há volta a dar-lhe, o titã Johann Wolfgang von Goethe com o «Poema sobre as Nuvens» (1820) em honra de Luke Howard, poderia tornar Diário das Nuvens numa ousadia de opera buffa. Contudo, como les ésprits se rencontrent, eis que encontramos logo a abrir a segunda estrofe do poema de Goethe aquilo que inegavelmente terá conduzido Vilhena e Cotrim. Assim, muito livremente: esse poder, em nós, que transforma sem medo imagens sem forma em coisas concretas Nun regt sich khühn des eigenen Bildes Kraft/ Die Unbestimmtes zu Bestimtem schaft»].

É esta máxima que faz do livro de que aqui se fala um "objecto" acima de curioso. Prodigioso. E as duas normas [de resto, um dos termos que poderia constar daquela tradução apressada de Goethe] foram: pela parte de Vilhena, a recusa de um figurativismo à bon marché, e que toda a gente cultivada no audiovisual esperaria — a nuvem-elefante, a nuvem-touro, a nuvem-cisne, enfim, a nuvem-Juno; e da parte de Cotrim, uma graça na retroversão de uma coloquialidade [diga-se, oralidade] encarniçada e inventiva, que o leva a urdir formações lexicais, e ortográficas, fulgurantes [palavras, pois], que todos ansiamos ver penetrar os nossos aparelhos vocais, sendo que algumas delas já o fizeram: «conven-sinais» [#02], «neo-escravo» [#05], «o coiso» [#15], «desprecisemos»[#16], «nocaute» [#41], «aerotransporte» [#56], «aferventamento» [#59], «diagnestiquei» [#78], e o imenso «aguardentar» [#18], parente maior dos «torneios de «baga-ginja» de um Mário de Carvalho [in Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina (2004)], e que esperamos que pegue. A partir daqui, é um manancial terminológico que poderia rapidamente corrigir a rota deste Diário no sentido de ser um “prontuário”, e por que não mesmo, uma ‘enciclopédia dos dias das nuvens’.

Mas não é só esta inovação vocabular [#73] que traz fortuna aos poemas de Cotrim. É ainda um tom muito dado aos aforismos disfóricos, que o poeta exercita com destreza indómita. O que nos envia para o recanto dessa sabedoria do desconchavo. Seriam muitos aos quais acorrer, mas há os que se habilitam ao estatuto de epigramas-de-gravar-a-cinzel-sobre-lápide: «[a] água não sabe nada de culpa» [#06], «ecce homo de cada dia nos fulminai hoje» [#12], «[a] realidade aumentada sabe a verdete» [#30], «a carícia não faz a mão» [#77]. Em igual linha, Cotrim pratica um jogo-trocadilho com as ‘idées réçues’, nas margens do capricho 'surrealizante', que confere ao texto um foguetório virtuoso. Leia-se: «[c]ruzes e canhoto nas fachadas à maneira dos boletins de jogos de azar. Para todos menos a santa casa dá sorte. Amanhã anda a cabeça à roda.» Um pagode.

Porém, para quem for ferverosamente respigar Diário das Nuvens em busca do desencontro, a nosso ver necessário, entre texto e imagem — o temível, 'cada qual para seu lado' —, irá sempre embater nas excepções matrimoniais de uma união fidelíssima. É assim que se dá a ver/ler o #52, que com as suas intrigantes ressonâncias à “Dióptrica” de René Descartes, coloca o ramo de louros sobre a cabeça do duo Vilhena/ Cotrim, e os incensa na qualidade de nefelibatas ajuramentados. A mensagem é sensivelmente esta: ceguem-nos a todos, mas devolvam-nos a rua [cf. imagem].

O que deslustra. — As variações cromáticas vão mal com Vilhena, que o deixam deslumbrado num caleidoscópio já muito virado e revirado, e que só resulta em sensacionalismo visual [V. #68]. — Cotrim escorrega não poucas vezes no abuso do hipérbato, sobretudo no que diz respeito à adjectivação, o que nunca se entende bem se é recurso irónico ou queda contínua num estilo altissonante, e isto fere a beleza da oralidade em carne viva: «incomensuráveis silêncios» (?) [#06], «exóticos pássaros» [#07], «o atinente objecto» [#11]. Hipérbato que chega a atingir o nível sintagmático. Aí, alcança-se um linguajar críptico, e desgracioso: «…logo suscita dissonante folia de reflexos a lamber com delícia fachadas…» [#17].

JBC

dezembro 2021