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«Centrifugar Angústias a 1600 rpm»

por

Rita Tormenta [texto]

João Gata [fotos]

Fernando Pinto do Amaral [Prefácio]

[mental, 2022]

Rhapsody in Bus

 

Há matéria ancestral sempre que os termos literatura e vida são colocados a par. Antes de mais, porque o enigma, ainda agora cifrado, é o de saber-se qual das duas alimenta a outra. Quando a modernidade verteu tudo em equações, a expressão “vida” transformou-se em “quotidiano”, e o efeito foi de estadão. Obviamente que o escândalo de o prosaico vir desalojar o lírico, o maravilhoso e o inefável dos aposentos das ​'belas letras' não foi facécia que se recomendasse, sobretudo porque deu conforto a todos os que achando que o mundo de Blake lhes estava vedado, encontraram na floricultura de um Baudelaire, na caixilharia de um Larkin, atravessando as ‘passages’ pútridas de um Zola, ofícios que tornavam o cosmos muito mais humano. E a respectiva versão literária muito mais alinhada com os dias. Deu-se um engarrafamento de equívocos e de equivocados, e quando todos gritavam acima a natureza e a vida, abaixo a arte (credo naturalista), um dandy inglês, Wilde, Oscar Wilde, numa ontologia negativa também ela já não muito fresca, fez relembrar que não é a arte que imita a vida, mas sim a vida que imita a arte.

Parece ser com chave recortada por este debate estético que deverá ler-se Centrifugar Angústias a 1600 rpm de Rita Tormenta. É o que, pelo menos, se retira do prefácio assinado por Fernando Pinto do Amaral, que lhe empresta uma moldura bondadosa de categorias estimáveis, tais como fragmento, micronarrativas, constelação de reflexos, reflexões. Acontece que quando na equação ‘literatura/ vida’ o segundo termo se travestiu de quotidianidade, os guardiões disciplinares proclamaram, então, que ao primeiro deveria ser retirada a condição de literatura. E apareceu a escrita. Não enquanto processo, na tradição barthesiana, acerca do qual se pode falar de estilo. Mas na qualidade de material quase palpável. É assim que Pinto do Amaral entende os textos de Rita Tormenta, dizendo deles que exsudam de uma «escrita omnívora», que se mostra «plástica, mutável, volátil – tão volátil como a vida que a sustenta.» É de crer que este seja um desenho bem-intencionado, mas releva de uma má-consciência de ter que tratar com escrúpulo resguardado um objecto heteróclito como o é Centrifugar Angústias a 1600 rpm. Agora usa mais dizer-se ‘inclassificável’ (em todas as suas acepções, principalmente na de ‘incorrecto’). E já não seria de esperar que isto, que é o grande triunfo de Centrifugar Angústias…, trouxesse qualquer embaraço a quem o lê, ao ponto de não se lhe outorgar os acessos literários que lhe são merecidos: texto, poesia, elegia, epigrama, dístico, fala, verso. Mesmo que à revelia de qualquer proposição autoral.

A partir de textos curtos e de natureza muito distante, Rita Tormenta compõe (com João Gata, fotos) um objecto de literatura especioso. E, reitere-se, o patamar em que se coloca de ‘inapropriável’ por qualquer pragmática dos géneros literários é o que lhe dá o estatuto altíssimo de ser algo acima de curioso. Porque não se creia que nessa peneira industriosa em que se transformaram as estantes livreiras e os gabinetes de estudos académicos, onde hoje até se consegue encontrar a etiqueta “auto-ensaio” (?!), está ao alcance de todos conceber literatura que não tenha gaveta em que ser arrumada. Não está. O sistema — ideológico — há-de encarregar-se de incorporá-la. Pode ser que não. E que assim não seja com o trabalho de Rita Tormenta, pois eis o que significará que o ter-se subtraído às mãos-do-negócio, fez dele expressão de uma liberdade apreciável. E se for necessária etiqueta, aqui a deixamos: radical livre. Mas, na verdade, estas considerações acabam por ser não mais do que reactivas ao excipiente irritante chamado “clube de leitores” da grande superfície, e que, na famosa tautologia trocista, vale o que vale. Importa resgatar Centrifugar Angústias… de uma certa turvação com que o prefaciador o traiu.

A linhagem em que o registo de Rita Tormenta se inscreve é a de um género maior na tradição da literatura. E logo aqui, é possível que haja algo a contrapelo com a leitura de Centrifugar Angústias…: a ideia de a representação da vida actual andar de candeias às avessas com uma qualquer tradição. Falácia, clame-se. A insigne tradição de que aqui se fala, é certo, migrou há muito da esfera da literatura para a da música, o que, infelizmente, a obnubilou. Referimo-nos ao ofício da rapsódia. Orfeu era um rapsodo. Rita Tormenta é um rapsodo. Ao ensaiar uma vocalidade spinto nos textos que nos devolve, a autora exibe aquilo que muitos poetas ajuramentados pugnam uma vida inteira por afinar: voz própria. A voz de Rita Tormenta está bem delineada (se sonora ou canora isso é para o diapasão das avis rara). É voz tão segura que as titubeações de um confessionalismo tardio ou de uma rebeldia fora de época só podem ser entendidas como estratégias retóricas da autora para, sibilinamente, afastar os que fazem gala de terem há muito perdido a inocência. De resto, é do foro da crueldade assentar ainda sobre Centrifugar Angústias… a canga desse signo vazio que é o de «uma escrita pessoal ou mesmo abertamente confessional» (in Prefácio). Mas compreende-se que dizer «[eu] gosto» (três ocorrências entre as págs. 176 e 189) seja entendido, por espíritos muito treinados no cepticismo desdenhoso, como manifestação de uma subjectividade debulhada, sem o distanciamento cínico de guardar os juízos de gosto exclusivamente para assuntos gastronómicos. Rita Tormenta exclui-se galhardamente de tudo isto.

E de regresso ao reconhecimento da voz da autora, impõe-se um excurso meta-crítico. Não são só os rapsodos que passam penas para fixar o timbre que os distingue, é também a crítica que se vê a braços para agarrar e traduzir semelhante exalação. A estratégia mais corrente é a de convocar referências e afinidades, o que resulta, a mor das vezes, no primado das filiações, modo desinfectado de um paternalismo infra-crítico. Verdade se diga que na ‘época alta’ que se atravessa em que as escritas polifónicas são um ‘ai Jesus’, dizer de uma autora que conseguiu conter o seu vibrato até poderá ter ecos repressivos. Todo um outro excurso. O modo mais sintonizado de reconhecer quem connosco fala, e a nós nos escreve, talvez seja saber de que lugar o faz, e que ressonâncias ele admite. Apesar de Rita Tormenta o fazer de alguns lugares já cartografados com minúcia pela estética da literatura moderna, e que de tão frequentados esgotaram o módico de arrojo que havia neles – é assim com “a cidade”, espaço dilecto de todas as vanguardas, e a que alguns poetas ainda insistem em acorrer como se fosse cutting edge; há um locus da eleição de Tormenta que arrisca inaugurar uma tópica genológica: o autocarro. Aqui sim, a autora dá-se a um registo de inesperada fineza, e de verdadeira descoberta artística. Sobretudo, porque o retira de um folclore stand-up (que, de resto, já não deverá assustar ninguém, isto quando um stand-upper chegou a passar pelo Teatro Nacional, e foi propulsado para festanças tão inovadoras que parecem ancien-régime).

Dos “textos-autocarro” de Rita Tormenta emana um sopro poético irrecusável. O efeito que desencadeiam de uma mise-en-abîme delirante, ou seja, a autora a ler no autocarro os textos que lemos sobre os autocarros e que não são literatura de autocarro (como quem diz “literatura de aeroporto”), rompe fragas à experiência da leitura, que é uma das coisas mais gratas que se espera da poesia. Neste lugar de enunciação que – grande risco – não é um lugar-comum (brava!), os recursos de Tormenta trazem arejamento à poética. É de salientar uma sensibilidade antropológica, a que o intelectualismo militante de certa poesia contemporânea é pouco dado. É o que transporta os registos desta tópica (tentemos: et in autocarro ego) para a vizinhança da thick description de Clifford Geertz, e que a autora pratica com acuidade: «Entro no autocarro,/ entro/ muitas vezes/ no autocarro, (…)/ Há loucos que gritam, adolescentes/ que cospem palavras, velhos que/ os insultam (…), miúdos/ de óculos, mulheres que levam marmitas (…)/ crianças com os pés nos/ bancos para tentarem comer o caminho/ com os olhos. (…)/ Uma mulher cansada, daquelas que/ se cobrem com roupa em vez de se/ vestirem.» (126-128). Daqui se retira, naturalmente, aquilo de que o autocarro é a representação em Centrifugar Angústias…. Não apenas lugar de interações sociais, muito calhadas para a caricatura, e que Rita Tormenta evita com tenacidade, mas palco de estados de alma (o título diz angústias). Que humor é este? Não poucas vezes, o texto devolve-no-lo com tiradas programáticas, e que pode traduzir-se como o combate titânico a uma nostalgia ideológica, barata, que nos é coletivamente inoculada. Saber-se-á porquê: como modo de dulcificar os ânimos e amestrar as massas, impondo uma resignação que se exprime num melhor-voltar-para-casa (que é aliás o que nostalgia quer dizer: dor-de-não-estar-em-casa). Diz Tormenta: «Sofre-se de pequenas nostalgias com sabor a frigorífico» (97); «Há uma nostalgia de sensações» (179);  «Acordei com esta nostalgia equinocial» (189).

É deste locus que nos vêm as passagens que maior atenção exigem. Ou se calhar nem tanto, porque a fábula em que Rita Tormenta as urde mostra-se magnética que baste para que toda a atenção seja conquistada. Falamos dos obrigatórios, e comoventíssimos, XII e XIX. No primeiro, há a história de um negócio de família falhado e contado a partir de uma troca de falas soltas. Com mestria narratológica, Tormenta termina-a através de uma elisão, com um verso que resulta tocante: «É meio parvo e deixou-se apanhar» (85). No segundo, reproduz-se a chamada de uma avó a um neto, avó das que “contam”. Pergunta ela: «Olha, queres vir buscar a avozinha na tua bicicleta?» (128). E a autora oferece, então, observação a condizer: «se um dia/ deixar de gostar das histórias que a pele/ dos outros transpira, aí os autocarros/ serão apenas lugares onde o suor é insuportável» (129).            

Será injusto dizer de Centrifugar Angústias… que é a celebração da viagem de autocarro, mas as ocorrências assim o indicam (doze textos em trinta). Injusto ainda porque, paradoxalmente, nelas acabam por dar -se os casos mais suspeitosos que sobre o trabalho de Rita Tormenta se podem levantar (acontece sempre a quem experimenta). O caso de uma grafia truncada para verter a oralidade, e trilhar o caminho mimético do ventriloquismo (completamente escusado em quem tem voz sua). O caso de uma estética do grotesco, que é apetecível, mas que por vezes acaba em destrato social (em XVIII, o «bombeiro tão gordo que não cabe no corredor do autocarro» [122]). O caso de um partido ideológico que talvez traga apenas o travo a traição de classe (XXVIII: «Foi a Georgia O’Keefe a reconciliar-me com os jarros» [178]). E o caso, mais sério, de um baixo tom claramente ensaiado, apenas para carregar a nota da irreverência (IX: «quero mesmo que a resiliência se foda». [66]).

Por bem, Tormenta acaba sequestrada pelo próprio talento. E a denunciar, por exemplo, que Horácio chegou até ela. A prodigiosa aurea mediocritas que compõe em XXIII – «Enganei-me no caminho para casa» não só não é compaginável com ​'espavento', como não é dada a qualquer um alcançar. Excelsa. O fulgor, muito penetrante, de uma recordação devolvida em tom elegíaco em XI – «E às vezes morrias tu e eu brincava», tem um brilhantismo raro, e que faz figura de provocação maior ao gosto hegemónico do que mil defesas da desgraça alheia (vide e.g. a elegia imprudente em XXIX – «Morreu Philip Seymour Hoffman»). Em XXVI – «Nos subúrbios as ruas passaram a ter nomes», está em jogo um retrato da condição suburbana arranjado com perspicácia tal que solicita vir a ser estudado, mais que não seja, em sociologia urbana. A forma fragmentária dos textos, dá à autora o instrumento para burilar aforismos de envergadura político-filosófica que vão mal ao lado do ‘último-comboio-para-a-rebeldia’: «a resiliência é a versão millennial/ do conformismo, uma forma moderna/ de tratar da própria vidinha» (66). Tudo a merecer ser antologiado. Não obrigatoriamente fora da rapsódia.

JBC

06 de julho 2022 

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