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teatro .

Suécia de Pedro Mexia

encenação Nuno Cardoso

pelo Teatro Nacional de São João no

40º Festival de Teatro de Almada,

Teatro Municipal Joaquim Benite - Almada

Sucéssia, sim e não 

 

O anedotário escandinavo narra que a matriz identitária dos quatro países nórdicos se desenrola da seguinte forma: a Finlândia cultiva e colhe aquilo que a Suécia transforma e produz, e que a Dinamraca negoceia e vende à Noruega, que compra e consome. Esta blague geo-económica poderia ser uma réplica das trocas Kula dos povos das ilhas Trobriand, a nordeste da Nova Guiné, e que Bronisław Malinowski, o pioneiro da etnografia moderna, descreveu em 1922 – há cem anos, portanto –, no livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental. Vem isto à conta de um certo exotismo que as latitudes da Europa setentrional sempre alimentaram na Europa esclarecida, seja de raiz anglo-sáxonica ou latina. Não no sentido do folclore, mas no da ´natureza humana’. E que como não poderá deixar de ver-se é o espelho do muito mais reconhecido exótico meridional, oriental e quem sabe até lunar. Aquele exótico que pós-Edward Saïd, e a denúncia do orientalismo, não pode frequentar-se sem um módico de falta de vergonha. Sobretudo pelo que contém, mais do que de segregação, de vampirismo cultural. Exotismo e prestígio são um menu irrecusável. A conversão que a modernidade operou nas sociedades nórdicas, transformou-as em territórios extravagantemente exemplares, com os quais se pode encher a boca quando se quer falar de desenvolvimento humano. Já não ocidental, mas sobreocidental. Telas de uma paisagem psico-metafísica sobre o fundo de relacionamentos humanos de que o mínimo que pode dizer-se é que são inquietantemente familiares (Unheimliche). Lugares de aspirações nobres, sobre os quais qualquer reflexão é irresistível e prestigiante. Mas não menos exóticos. E é, portanto, com o respaldo deste prestígio que Pedro Mexia pode apresentar com denodo, em dois mil e vinte e três, um texto dramático intitulado Suécia, que é sobre a nação-Suécia e se passa no país-Suécia. A Suécia é para Mexia o que a Pérsia foi para Chateaubriand: um locus de sofisticação acrescida. De elevação intelectual e também poética. Um signo complexo, muito recortado pela imaginação pessoal a partir de um referente simplificado. Talvez mesmo tipificado sobre aquilo que o autor invoca como sendo «a experiência sueca».

 

Nada disto retira bondade à proposta teatral que o Teatro Nacional São João empreendeu; e a que Pedro Mexia dá uma resposta sobretudo correcta; que Nuno Cardoso encena com desvelo; mas que resulta num objecto de teatro muito desencontrado consigo mesmo; e que chegou ao Festival de Teatro de Almada como o sucesso de fim de temporada; ainda que acabe por ser apenas um espectáculo amenamente esquecível.

 

Na verdade, e ultrapassando a supina raridade que constitui a encomenda de texto dramático, há muito que não se assistia no nosso panorama cénico à necessidade de uma bravata explicativa e justificativa que desse sentido a um texto, a uma encenação e a um espectáculo, isto para lá das sempre intocáveis opções de oficina dos artistas contratados (vide «Temos de falar sobre a Suécia de Pedro Mexia: uma peça de ideias» in Jornal Público [7 de Junho]). Produziu-se e proferiu-se, pois,  um arsenal tradutório sobre o aquilo que é a peça Suécia e ao qual Mexia se entregou, talvez como bom divulgador de cultura, com mais talento do que o que mostrou como dramaturgo. E o que se apura é que Suécia está nutrida por um largo trabalho de pesquisa e interesse pessoais acerca da realidade, da sociedade, da mentalidade e da política suecas de há meio século, tutelada ainda por referências da literatura, do cinema e do drama que se foram constituindo – e com o tempo cada vez mais –, como iguaria de culto. Portanto, além de uma peça sobre terra ex–ótica, tal como o é o passado (aquele «the past is a foreign country: people do things differently there» de L.P. Hartley no romance The Go-Between) – o que compõe um quadro de sabor historicista à oitocentos –, Suécia é também uma peça-de-época, coisa hoje artisticamente tão arrojada que talvez se ofereça como a única glória que lhe acontece. Neste sentido, para esta Suécia,douze points”.

 

Sob a caução daquilo que pode chamar-se um decalque-Bergman no desenho da situação e das personagens – no limiar do pastiche –, Mexia compõe uma peça-de-retalhos (e não uma «peça-de-peças», como julga Jacinto Lucas Pires no texto «Como quem diz “está a chover”» no programa desta produção). Segundo consta, regido pela ideia-condutora de ter um conjunto de figuras a debitar falas sem que nada de facto suceda, em diálogos corridos que denunciariam o vazio e a leveza existenciais e a rarefacção da vida («e essa ideia (…) tem a ver com o meu gosto pelos diálogos, mais do que pela narrativa, que é verdade no cinema, no teatro (…). Gosto muito de ver pessoas a falar. Adoro aqueles filmes do Rohmer em que estão pessoas a falar durante 90 minutos e quase nada acontece» [in programa]). Sucede afinal que há uma história, a intriga adensa-se e aquilo que poderia ser apenas uma Suécia cosa mentale está desconchavada por uma sucessão de casos que não se reclamam, de todo, dessa “tragicomédia das pequenas histórias” [a la Tchékov], mas que são o precipitado das grandes decisões de uma vida: a boda, a viagem, a separação, a evasão, o isolamento. Tudo isto ocorre em Suécia. A mor das vezes, precipita-se sob a ilustração de tiradas bonitas («tu não vês as fotografias há vinte anos»). O modo como um qualquer plot foi aqui enxertado é que se ressente desse desencontro entre um teatro de ideias, e de quimeras, e um drama de malha aristotélica apertada, onde as três unidades se mantêm blindadas (acção, tempo e lugar) e não há nunca uma corrente de ar que faça entrar a fábula. Se quisermos cotejar referência-a-referência as afinidades desta Suécia, sucede que o objecto de que mais se aproxima será a peça de Henrik Ibsen Hedda Gabler. Mas uma Hedda Gabler sem pistolas.

 

Verdade se diga que Suécia esconde um achado temático sedutor e saliente em relação a todos os outros, e que é o seu filão político, sem que isso a transforme numa peça-panfleto. No caso, denuncia-se, pela voz e mal-de-vivre de Egerman, o protagonista, essa bizarria totalitária que é o «modelo sueco», em que uma 

democracia elege sempre o mesmo governo, onde a social-democracia runs wild, onde o estado providência é uma joia de relojoaria, mas onde a felicidade chega muito a conta-gotas. Afirma o autor que «ficou claro para mim que existia algum potencial dramático [nesta] história» [in programa]. Mas o que dramaturgicamente disto se retirou foi o muito gasto e imprestável fosso geracional, em que o afastamento pai-filha-genro está posto ao serviço de uma diatribe pífia sobre alienação política e progresso social. Nada que se compare à truculência saborosíssima que Thomas Bernhard instilou em situação idêntica, em torno do socialismo austríaco, na peça Heldenplatz.

 

Mas quem sabe se por voltas que as soluções da encenação de Nuno Cardoso foi dando ao texto de Mexia, Suécia acaba, com certa ironia, perto de tornar-se numa peça-tese. De resto, a encenação de Cardoso não consegue disfarçar a sabotagem (chamemos-lhe apenas ‘reinterpretação’) que permanentemente oferece à ganga “referencial” de Mexia. Com as suas entradas e saídas de personagens à italiana; com os diálogos a serem muitas vezes trocados em staccato; com a movimentação empolgada dos actores; com um deck a todo o comprimento da cena que é mais um palco dentro de um palco do que um ancoradouro-Mónica-e-o-Desejo; com um fundo cenográfico de toque onírico e aparato surrealizante (é um rochedo, senhores, não é uma ilha); com separadores musicais [de Pedro “Peixe” Cardoso] ao gosto Nino Rota ou Henry Mancini; com uma tensão muito em carne viva posta sobre o neurótico Egerman, o pai da noiva, que António Fonseca compõe com uma perícia física e mental vibrante, devolvendo-nos melhor o nervosismo da união matrimonial (ele mesmo trajando de branco) do que a neurastenia social-democrata; a fita Suécia é, assim, uma fellinianade. E a centralidade que o casamento ali adquire, estação obrigatória de uma teatralidade itálica, transforma-se em suprema alegoria política. E parece ser esta a tese, também em Portugal, dois mil e vinte três: no pós-social-democracia, há que fazer casamentos, mesmo que não se goste do noivo e que quem, no final, tenha de atirar o bouquet para aquilo que se segue, seja o pai da noiva. Momento quase grotesco com que termina o espectáculo Suécia, e a que António Fonseca empresta um pathos comoventíssimo. Finita la commedia.

JBC

1​0 de Julho '23

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