. teatro .

Fausto

de J. W. Goethe [a partir de G. Nerval]

Direcção João Mota

Comuna – Teatro de Pesquisa

de 30 de Abril a 19 de Junho

 

Um Fausto de dez lustros,

ou Ó Pécora volta para trás

por Santa Melânia,

[dez] candeias arderam ali noite e dia

 

Em maio de 2006, Graham Vick provocou um escândalo de saison quando, ao encenar o Ouro do Reno de Richard Wagner, transformou a plateia do Teatro Nacional de São Carlos numa arena, imenso praticável para cantores, actores, máquinas e adereços executarem, em cena aberta, as manobras que lhes competiam. Isto enquanto os espectadores, arredados para as tábuas e encavalitados nos camarotes, eram sujeitos à ousadia de se verem eles mesmos a servir de cenário. O arrojo continuou por mais três temporadas, até o ciclo do Anel ficar completo. E chegou a dar origem a um debate de contornos gramaticais que atravessou a crítica, expondo-a numa debilidade de leitura muito ingrata. Discutia-se se Vick teria virado o teatro do avesso, ou ao avesso. O que trouxe os ânimos incendiados foi um certo sabor a inovação que a coisa descarregava em palatos que talvez se sentissem agredidos por achar que não tinha de haver novidade numa revolução, passe-se a antítese, já de si supinamente conservadora. A wagneriana. Wagner e escândalo são um namoro antigo. Com o Fausto de J. W. Goethe não é diferente. Sobretudo pela mensagem amarga que o mito carrega – e que não é cuidado com Mephisto; antes, cuidado com o amor.  Mas também, ainda, à conta da desmesura dramatúrgica de Goethe, ao ponto de a obra – ironia fáustica – ter distorcido o retrato do autor.   E foi assim que Fausto & Goethe acumularam predicados nada propícios à ida a cena. Um, de superstição saborosíssima: texto amaldiçoado. Outro, sem saída: peça ‘irrepresentável’ (tanto que há dois Faustos, um primeiro e um segundo, e até mesmo um arcaico, o Ur-Faust). Por fim,  mais sério: autor intraduzível. Tradução, aqui, exorbitando a esfera linguística e entendida como processo de transposição de arte. No caso, do discurso literário para a composição cénica.

A assinalar os 50 anos de trabalho, a Comuna – Teatro de Pesquisa dá-nos Fausto. E precisamente através de um gesto temerário que honra em toda a extensão o propósito de uma pesquisa em curso. No esteio daquilo que o Anel proporcionou a Vick – não se duvide, um herdeiro do Peter Brook alimentado por Grotowski a que a Comuna sempre se abalançou –, João Mota, que dirige este Fausto, impõe uma revolução espacial, quasi-coperniciana, ao cânone de como se vê um ‘certo’ teatro. Ou melhor, de como se vive o teatro, tout-court. Em toda a duração da récita, os espectadores são largados, de pé, em cena, com os actores a deambularem no meio deles. Quem vê e quem é visto comungam de proximidade corpo-a-corpo, o que desencadeia uma imersão muito nobre, e transforma a anódina ida ao teatro, numa vertiginosa queda dentro do teatro. A fortuna que isto traz à atmosfera faustiana é de monta: a de tornar vivo o confronto com o “temível”. Em concreto, com o contacto físico entre actor e espectador, o que a trincheira palco-plateia se encarregou de ir tornando num desconforto de contornos sociais. Este Fausto-entre-nós desarmadilha aquela tensão, e, dir-se-á mais, obvia a uma estética do acaso e do risco com que as artes de palco costumam encher a boca – o famigerado “cada sessão é única” –, mas que, na realidade, pouco exercitam à força de práticas mnemótécnicas: marcação-marcação, ensaio-ensaio.

No contexto do nosso panorama teatral, não devem poupar-se loas aos múltiplos privilégios que tal solução cénica concede. Saliente-se talvez o mais excelso de todos. Poder estar a um palmo de Carlos Paulo para ouvi-lo dizer as palavras de um Fausto, de alta idade, comoventíssimo. Carlos Paulo que é, talvez, dos actores que mais longe levou o trabalho de uma elocução rigorosa, sempre como denúncia daquilo que é o fosso das ribaltas. Só com isto, estaria este Fausto redimido.

Mas nem tanto. Aquilo que neste espectáculo é revolucionário, rapidamente tropeça em peripécias duvidosas que mostram a linhagem pouco recomendável do dispositivo proposto. E o que parece novidade e experimentação traz afinal o travo a tempos requentados. Tal como aquilo que Vick fez tinha já sido ensaiado pelo peregrino Zeffirelli, também o espectador-em-acção deste Fausto-Mota transporta-nos para as exibições medonhas dos La Fura dels Baus, que conseguiram chegar ao teatro lírico, e fizeram pior ao gosto de uma década do que vinte anos de Bolero de Ravel coreografado por Maurice Béjart. Momento aflitivo é, por exemplo, o da entrada da jaula em que Margarida é encarcerada, objecto já por si de uma sobredeterminação semiológica desnecessária. É então que se vê o diretor, João Mota lui même – e sem estar en personnage –, a dar instruções, qual domador circense, sobre onde os espectadores deverão colocar-se. Conduzindo-os, senão mesmo, enxotando-os. Fica assim o pacto com o público irremediavelmente comprometido. A partir desta traição, o único interesse do espectáculo passa a ser o comportamento de quem vê, motivo de observação infra-dramática. E aí, há uma legião prodigiosa que se faz ver: a dos que acabaram por sentar-se com enfado nos bancos suecos que por ali há, ou ainda no chão, os que encostam o ombro à parede apoiados numa só perna, os que cruzam os braços e não mudam de lugar nem por uma pena, os que pregam os cotovelos num qualquer ressalto, os que se chegam tão perto da actriz que a fixam qual avis rara, os que coçam a cabeça.  Tudo isto é basto combustível para um estudo de antropologia do espaço, mas é perfurante para qualquer acção dramática. Mormente em torno de um texto que exige uma concentração de studium, e não a cegarrega de um workshop. Verdade se diga que este Fausto arrisca tornar-se, para espectadores não iniciados, na peça de uma geração. Um pouco à imagem do que, a seu tempo, foram o Fausto. Fernando. Fragmentos, por Ricardo Pais (TNDM [1989]), a Comédia de Rubena, por Luís Miguel Cintra (Cornucópia [1991]), e, acima de todos, A Pécora, a partir de Natália Correia, por João Mota [1989], nesta mesma Comuna – Teatro de Pesquisa.

A Pécora, que teve uma temporada sem paralelo, foi verdadeiramente o espectáculo de uma geração. O que, mesmo em cinquenta anos, não é fácil de bisar. Mas foi também uma lição de intransigência estética, com toda a bondade que nisto possa depositar-se. Os mais de trinta anos que a separam deste Fausto parecem ter engrossado uma constelação de concessões a que a Comuna se foi entregando, quem sabe movida pela falácia de que pesquisa também significará progresso. Uma das mais nefastas é a da incursão pelos dispositivos audiovisuais. Comuna e tecnologia sempre surgiram como uma contradição nos termos. Neste Fausto, um telão que desce e onde se projectam imagens proto-World-Press-Photo, ao som de uma valsa de Strauss, instante de um sensacionalismo escusado, é a prova rematada de que há caminhos que a pesquisa não pode trilhar. Mais que não seja porque já estão trilhados. Por certo que José Mário Branco (música original de A Pécora) e José Pedro Caiado (assessor musical em A Pécora), jamais cederiam à debitação de música gravada. Ou discordariam, tão-só, da voz d’ O Senhor emitida num off em amplificação acústica com decibéis de santoinho.

Há outros sobressaltos incompreensíveis, que vão dos adereços, não bem povera, o que viria a calhar, mas antes desfigurados por um kitsch que até poderia funcionar como crítica ao capitalismo, mas assim não parece; passando ainda pelo estereótipo high-fantasy com que o frasco do elixir mefistofélico é exibido; acabando nuns figurinos desconchavados, sobre os quais recai a suspeita de serem a reconstituição do rústico. Reserva: Fausto solicita a sofisticação de um erudito.

A força inegável deste trabalho acaba por vir da trupe de actores que compõem o elenco. O jovem Fausto de Rogério Vale é um portento de nuances fecundas, lançando-se em excursos pelo registo reflexivo muito dominados, o que a nem todos os intérpretes corre bem. Um achado. Ana Lúcia Palminha oferece-nos uma Margarida dilacerada como se espera que o seja, mas o tom pungente com que sustenta o papel fica descompensado na sequência da condenação. Exigir-se-ia menos candura e mais desassombro na ocasião em que se confessa aprisionada pelo amor. Há desdobramentos vários na Gretchen (Margarida) de Goethe, e um deles é o de ser uma presumível aliciadora. Este, em particular, nunca nos é devolvido. O naipe de taberneiros (Luís Garcia, Miguel Sermão, Gonçalo Botelho, Francisco Pereira de Almeida) arregimenta os trunfos que a este Fausto se reconhecem, e alcança uma perícia cénica digna de antologia. A não perder. Naturalmente que a palma está guardada para Hugo Franco em Mefistófeles, papel, curiosamente, que parece ter esperado uma vida para ser entregue a Carlos Paulo. Mas assim não foi. Dommage. Hugo Franco é senhor das mais exigentes competências que a um Mephisto são pedidas, sobretudo no que toca à forma sibilina, quase reptilínea, com que gere a movimentação. Há uma Walpurgisnacht inteira de que o corpo de Hugo Franco está impregnado. Uma dança macabra, para ser mais certeiro. Mas tudo isto mostrado com um à-vontade e uma bienséance exímios. Porém, responsabilidades assacadas à dramaturgia, há neste Mefistófeles uma acentuação demasiado carnal, com uma lascívia debulhada e a cair em lugares-comuns, a que um figurino à Cabaret 1920 só empresta clichés. Mefistófeles é algo mais. É a expressão do intelecto retorcido de um psicagogo, que leva ao desespero. Coisa que não se alcança sem estar, pelo menos, meio-minuto em repouso. Este Franco-Mefistófeles é magnético, sem que seja, porém, sinistro, o que talvez devesse.

Acontece o maior infortúnio estar na exacta raiz deste Fausto: a versão do texto. Há dois fardos com os quais não se atingem bons resultados. O fardo da má-consciência e o da falsa-consciência. A primeira como expressão de não estar a fazer-se tão bondosamente quanto se deveria. A segunda como expressão de estar a fazer-se muito mais prestigiosamente do que seria necessário. Em arte, ambas concorrem para corromper a digníssima dualidade "verdadeiro-belo". É certo que o teatro-dança de uma Pina Bausch foi construído sobre uma má-consciência. E que o género musical de Hollywood foi fundado sobre uma falsa-consciência. A Comuna, neste Fausto, e muito escusadamente, não evita as duas. Existe uma tradução do Fausto de Goethe para português que, em vinte e cinco anos, atingiu o acúmen de uma respeitabilidade indiscutível. Que ela se tenha revelado imprestável, por impossibilidade de uso ou de adaptação, não justifica que se faça alarde de uma gemiparidade em segunda mão, alçando a versão utilizada ao estatuto de uma co-autoria, Goethe/Nerval, mesmo que enquanto curiosidade histórica não se esteja a faltar à verdade. Sucede que o escolho não reside na tradução de Gerard de Nerval para francês (1828), que permitiu a Goethe circular pelo espaço das línguas neo-latinas a ponto de conquistar a esfera da música, com o poema sinfónico, ou Lenda Dramática em Quatro Partes, de Hector Berlioz, «La Damnation de Faust» [1846], o que os Teutões nunca lhe concederam. A questão é a tradução da tradução da tradução. O ‘verbo’ que Luiza Neto Jorge (tradução) emprestou ao Fausto está irrecuperavelmente marcado por falas já pouco frescas, senão mesmo à bon marché, nas quais pululam tiradas como «a minha na tua alma» ou «o meu ventre rasgado». É possível que a consciência desta imperfeição tenha levado a Comuna a colocar-se no patamar onde ocorrem as realizações de aparato, como quem com o prestígio disfarça um demérito de classe. O eco deste transtorno, depois do espectáculo terminado, irá persistir na história, através de uma folha-de-sala aprimorada, que cai como manifestação de novo-riquismo e de fanfarronice, veículo para verbetes escolares, notas sem o dever da imparcialidade, e atentados à estilística da língua portuguesa – objecto daqueles a que nenhum dinheiro público deveria estar associado. Da Comuna – Teatro de Pesquisa, não se esperaria assim.

No final da récita a que assistimos, e já depois dos aplausos e da porta aberta, Carlos Paulo dirigiu-se ao público num momento humílimo, mas não menos fulgurante, em verdadeira defesa da causa pública. Denunciou o boicote que os grupos de comunicação infligem ao teatro. E assemelhou-o à censura de outro tempo. Pediu que se passasse a palavra sobre este Fausto. Por isso, a luta continua. Falta dizer o mesmo sobre a pesquisa.                             

JBC, 09 de Junho 22