. teatro .

Hipólito

de Eurípides

encenação: Rogério Carvalho

Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada

até 20 de Fevereiro

 

Um Hipólito sem coroa: pensar dói

 

«J’adorais Hippolyte (…)

Même au pied des autels que je faisais fumer

J’offrais tout a ce Dieu que je n’osais nommer.»

Racine, Phèdre (1677)

 

As condições difusas com que o teatro trágico, ou melhor, a tragédia enquanto artefacto cultural, chegou até nós, tornaram-no num veículo tão carregado de enigmas, mistérios e conjecturas, que ele acabou, à força de tanto esforço interpretativo, por transformar-se num significante imprestável. Naquilo que poderemos identificar como um signo que de querermos a todo o custo que diga coisas tantas, acaba por não nos dizer nada.

E isto é tão mais lancinante quanto o adjectivo “trágico” está à rédea solta no espaço público, banalizado como anda enquanto substituto grandíloquo para nos referirmos a meras fatalidades. Ou também, e ainda, sempre que o texto trágico da antiguidade é levado a cena. Neste caso, podemos estar seguros de que um pelotão de classicistas, e outros estudiosos, virá endoutrinar-nos com superlativismos vários, ou teses abscônditas. Falamos, em concreto, da tragédia grega, de que uma delas, Hipólito de Eurípides, a Companhia de Teatro de Almada apresenta por estes dias no Teatro Municipal Joaquim Benite, precisamente em Almada, com encenação de Rogério de Carvalho. E para sermos mais detalhados, tanto na “folha-de-sala”, quanto no “caderno-programa” que acompanha o espectáculo, de si, iniciativas correctas e louváveis, podemos encontrar, pelo punho de José Pedro Serra, um helenista com pergaminhos na academia, passagens de um paternalismo desta estirpe: «Raras foram as criações do espírito que (…) marcaram tanto a cultura ocidental como a tragédia grega a marcou» (p. 7), para mais adiante interrogar-se, «o que faz com que ela tenha um imenso, e talvez inesgotável, significado para nós…» (ibid.) Não deixam de ser considerações estimáveis. Aliás, o autor tem a sabedoria de um pedagogo old school para assinar um texto humílimo que é prodigioso no registo de grande divulgador de cultura, e onde, se descontarmos os pecadilhos apontados, não encontramos qualquer bazófia teórica. O mesmo já não cabe dizer do artigo redigido por Rui Pina Coelho, que nos brinda com seis «ruminações» [sic] («Seis ruminações sobre Fedra e Hipólito») nas quais o guazzabuglio conceptual é tão revirado, que o jogo entre «drama-na-vida» e «drama-em-vida» (p.45) resulta num tal bizantinismo que o autor se vê impelido a fazer duas extensas citações, uma de Miguel de Unamuno (no original castelhano) e outra de Jean-Pierre Sarrazac, ambas completamente desadequadas no contexto do objecto “caderno-programa” em questão. E o propósito do texto de Rui Pina Coelho, regido pelo «percurso teatral do mito de Fedra nos séculos XX e XXI» (p. 5), talvez fosse o que mais pudesse contribuir para a melhor recepção deste Hipólito, isto dentro de um desígnio que marca a urgência do que convém designar, com uma certa leveza, como a necessidade de actualizar os motivos trágicos. E que só o primado da encenação pode garantir. De resto, outras expressões artísticas que, no tempo que corre, arriscam a opacidade, como é o caso do teatro lírico, já se lhe renderam. E jogam em torno da encenação, a respectiva sobrevivência.

Mas para nos permitirmos uma boutade sonora, felizmente que os helenistas interessam tanto à encenação do trágico quanto os ornitólogos interessam aos pássaros. Igual já não acontece, a fortiori, com o encenador. Com o dramaturgo. Com os actores. Com o figurinista. Com o cenógrafo.

E, assim sucedeu que: o único mérito deste Hipólito em Almada é o da boa intenção em apresentá-lo à cidade, a qual só tem a oportunidade de ver e ouvir uma tragédia grega, num palco envernizado por dinheiros públicos, a intervalos bissextos. Quanto ao mais, tudo poderia ficar resumido neste episódio: na récita a que assistimos, houve gargalhadas na plateia, quando a personagem de Hipólito proclamou a sua diatribe contra as mulheres, um dos discursos ainda hoje mais ultrajantes da tragediografia antiga, e que vale a Eurípides o epíteto desconchavado de misógino. Discurso que, na verdade, traça o destino de Hipólito, ele mesmo, a quem a deusa Ártemis, a grande mentora, à conta de tamanhas palavras, acaba por abandonar. Portanto, gargalhadas para Eurípides.

Mas respeitemos aquela ordem de entrada, e, deixando a encenação para último, diga-se, desde já, que a falha dramatúrgica é clamorosa. Dramaturgia, aliás, não assinada. Hoje, na polis nacional, do Portugal de 2022, quem são estes Hipólito, Fedra e Teseu? E mais propriamente quem é a Afrodite que nos enlouquece e a Ártemis que nos enfurece? Nada fica claro. Quem se dedica a fazer tragédia, terá de perceber que está a executar um trabalho de arqueologia. O que significa montar fragmentos de mentalidade que se adequem à leitura e à visão dos que, neste exacto instante, irão vê-la. Sobre uma das expressões dramáticas da linhagem trágica, o Traeurspiel [drama lutuoso] do Barroco alemão, disse Walter Benjamin que a alegoria é no palco, o que o fragmento é no plano das ideias. E faltam alegorias a este Hipólito de Almada. A mais importante talvez seja a do silêncio, ou da palavra silenciada, ou da palavra não dita. Hipólito de Eurípides, além de muitas coisas de que o signo trágico o carrega, é hoje, sobretudo acerca da vergonha em dizer que se ama. Fedra, a apaixonada ratée, nem consegue pronunciar o nome do amado, Hipólito. E é isto que é trágico. Não o facto de ele ser enteado dela, e que ela se mate para se vingar do desprezo que ele lhe oferece. Neste texto, uma das inovações mais desvairadas de Eurípides é ter posto os protagonistas a não trocar uma única palavra entre eles. Nunca dialogam. Ficou célebre a deixa, tão actual, que Fedra dirige à Ama, quando esta conclui que é por Hipólito que ela está enamorada. E diz Fedra: «Ouviste-o da tua boca, e não da minha» (v.353). Racine transformou-a, na Phèdre que escreveu, num seco «c’est toi qui l’as nommé». A este respeito, um dos artigos daquele “caderno-programa” cuja leitura é mais grata é precisamente «Os Silêncios de Hipólito e Fedra na Phèdre de Racine» por Marta Teixeira Anacleto.

Numa tragédia em que o não-dito deveria ser honrado, acabamos por ter, do lado dos actores, prestações tagarelas e enfáticas que não respeitam a dimensão litúrgica que é certamente um dos “torrões” mais seguros por entre os achados arqueológicos na reconstituição trágica. Pois que o Hipólito de Cláudio da Silva, vindo placidamente de um campo não lavrado, empunhando uma coroa fresca de flores virgens – isto diz o texto – entra em cena desaustinado, numa berraria vitalista à Marlon Brando saído dos lodos do cais. E como se não bastasse, a coroa que nos mostra é um adereço engelhado, mais fúnebre que bucólico. E há-de ser sempre este o tom até ao final. À Ama de Elsa Valentim faltam pausas tantas, quantas vezes se baixa e levanta para, talvez, não cansar a audiência com textos tão lamuriosos. O Coro, interpretado a uma só voz por Sofia Correia gesticula tão fervorosamente e recorre a uma elocução tão vertiginosa que se aproxima mais de uma figura de programa audiovisual, do que de um coreuta num anfiteatro. A Fedra de Teresa Gafeira sofre mais de uma gravitas romana do que um miasma grego, e o modo como se despede de cena, assemelha-se antes a um número de circo do que a um adeus a Epidauro. Aliás, a feérie desta Fedra já tinha começado, logo a abrir, com a personagem a fumar cigarro, atrás de cigarro, num número de vaudeville ou de tormenta dramática à teatro realista burguês. Sobressaem a correcção de Marques d’Arede que persegue um Teseu calado pelo espanto; o Servo de Pedro Fiúza, de uma debitação e intensidade milimétricas, mas sem frieza; a Ártemis de Joana Francampos, bastante articulada, e que é um deslize da encenação não tê-la feito entrar como Deus ex-machina, segundo a indicação de Eurípides, pondo-lhe à frente apenas um microfone desenxabido.

José Manuel Castanheira engendra um espaço cénico que não faz jus ao cenógrafo que já foi, e onde o desastre de uma monumentalidade pretensiosa cose mal com cadeiras de petit salon, saídas de uma sessão de pinturas domésticas. O féretro de Fedra é de um gosto que quase merece um alerta ao público sobre passagens que eventualmente possam ferir a sensibilidade do espectador.  Os figurinos de Mariana Sá Nogueira são como um mostruário de boas tentativas, mas só acertou numa: o figurino da Ama, cujo degradé a vermelho na bainha, traz a pista de ter andado a rojar em chão de sangue. Imperdoável foi não ter oferecido a Hipólito, rapaz de cavalos, filho de uma Amazona, as cnémides e os elmos que o respeito por uma semiologia do espectáculo exigiria. Ficou-se por umas pulseiras negras justas, que, quem sabe, talvez sejam mais ao sabor das subculturas da Península de Setúbal.

Aquilo em que o encenador não teve mão, acabou por ser a causa maior do que impediu este Hipólito de ser mais do que uma hora e meia de teatro. E leva o nome de “sentido de tempo”. Actualmente, usa-se sobretudo falar de ritmo. Como tragédia em que o grande debate anda em torno do inconfessável, em Hipólito, deve dar-se a quem fala a respiração para terminar de fazê-lo pausadamente. Pôr personagens a circular, a entrar e a sair, enquanto outras ainda declamam é apenas sinal de impaciência. Eurípides esperou mais de uma década até ganhar o primeiro prémio nas “Grandes Dionísias”. Precisamente com este Hipólito.

 

JBC

17 de Fevereiro 22